quarta-feira, 30 de abril de 2014

SAUDADES DO FUTURO (2)




[Editado de um texto de Arnaldo Jabor publicado no Segundo Caderno do jornal O GLOBO]


A cultura patriarcal/estatal desde a colônia nos garantiu durante o populismo janguista até 64, que o Estado faria uma revolução tropical e transcendental (vide os delírios de Darcy Ribeiro, por exemplo), de modo a tirar o país da "alienação" e salvar, pela arte, os oprimidos. A cultura era uma política. O golpe de 64 foi uma porrada na utopia. Mas houve uma vantagem: a derrota nos "ajudou" a ver o atraso de nossas certezas. A ditadura e a depressão dos derrotados nos mostraram que o buraco era mais embaixo e que as forças da História eram mais labirínticas. A esquerda começou a se autocriticar (nem toda, claro - vide os soviéticos que ainda vicejam por aí).

Nos anos 1970, a contracultura ampliou repertórios e códigos artísticos, pela loucura do "desbunde" e da subcultura hippie. Houve uma virada mais antropológica que ideológica.



De cabeça para baixo, vimos mais. Valíamos pelo que "não" tínhamos e, se antes éramos vítimas imaginárias do capitalismo, agora éramos vítimas reais da ditadura e passamos a ter uma nova meta: a liberdade.

Surgiu um novo ente: o mercado. Se Lênin disse que nada existe fora do poder, o capital respondia que nada existia fora do mercado. Para onde ir? O trauma da globalização foi mais profundo que a derrota de 64; ficamos mais informados politicamente, mais cultos, embora, para os mais burros, tenha renascido um neonacionalismo rancoroso e feroz, a ideologia cultural do "bode-preto" reforçando conceitos superados: um "mix" de farrapos de esquerda, azedume "punk", pálida tristeza e anseios regressistas.

De repente, outra porrada no voluntarismo de intelectuais e artistas: não há mais futuro. Subitamente o presente nos atacou com uma enxurrada de vida liberada pela era digital na internet.

Sempre falávamos na democratização da cultura, das artes... Pois ela está aí... e não foi o Estado nem o ministério, nem anseios neorromânticos. 

Ela está aí... Bill Gates, Jobs, as redes, os microchips mudaram o mundo... Quem diria?



E agora a mutação é mais intrincada porque não há "uma" ideia nova, uma escola, uma tendência. A mutação atual é a "contribuição milionária" de todos os desejos expressivos. Mudaram todos os suportes, as formas se multiplicam sem parar criando novas significações.

Sabíamos que a era digital mudaria tudo, desde o mundo árabe até a poesia de Shakespeare? Mais uma vez, as coisas criam os homens... Todo mundo pode fazer arte, poesia e a internet é o novo parnaso digital.

Reação romântica: como fazer arte sem futuro, sem finalidade? Sem a ideia de "eterno"? Que será do artista demiurgo, aqueles "poucos falando para muitos"? Agora, em que todos criam para todos, o que é "importante", como dizíamos? O que terá hoje ou amanhã o prefixo"Ur" (alemão) - as coisas fundadoras? Onde está a totalidade?

  

Há uma revolução de meios sem uma clareza de fins. Como será o mundo árabe? Como será a grande arte? Ainda haverá? Os meios justificam fins desconhecidos. E, vamos combinar, que mesmo na louvação das irrelevâncias, ainda dorme talvez o desejo de um sentido. Olha a encrenca... A própria ideia de um debate sobre esta dúvida já é antiga.

Se fosse proposta a um jovem blogueiro, ele diria: "Pra quê?"


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DENTADURA, SAPATO OU EMPREGO


[Texto editado de autoria de João Ubaldo Ribeiro publicado no jornal O GLOBO ]


E, lá no meu sertão, como andará a festa? O brasileiro não sabe votar, avaliação todos os dias repetida, até mesmo num texto falsamente atribuído a mim, que circulou na internet e que já desisti de desmentir. Se isso se refere aos brasileiros pobres, miseráveis ou esquecidos nos cafundós, não tenho tanta certeza de que representa a verdade. Que quer dizer "votar certo"?

O eleitor vota certo, digamos, quando vota no candidato que representa seus legítimos interesses e aspirações. Nesse caso, quando vende seu voto, ou troca por uma dentadura, um par de sapatos ou, melhor ainda, um emprego, o tal eleitor "inconsciente" não estará votando certo? Em muitos casos, somente na próxima eleição é que ele vai ver esse pessoal que ora compra o seu voto. A eleição é uma ocasião preciosa e rara que se oferece a ele.


Durante a temporada eleitoral, ele é cumprimentado, é escutado e elogiado, vira até gente e recebe alguma coisa de um mundo que o ignora e abandona o resto do tempo. Que outra serventia tem o voto para ele? Como vão caber no horizonte dele as questões discutidas pelos "esclarecidos"? Que real diferença, para ele, existe entre um deputado e outro, a não ser que um recompensa o voto com uma graninha, um sapatinho, uma dentadurazinha, uma colocaçãozinha - e o outro nem isso? 

E, como nem um nem outro jamais fizeram nada para beneficiá-lo, estará votando errado, ao ser recompensado pelo seu voto da única forma que a experiência o autoriza a ver como viável?

E os que votam "certo"? Aqui de novo há uma escala. Quem furta galinha é ladrão; quem furta muitos milhões é um financista vitimado pelas vicissitudes do mercado; quem furta bilhões é um grande homem. Matou um, é assassino; matou milhões é grande líder. Da mesma forma, quem negocia seu voto por um emprego vota errado. Em compensação, votam certo os que negociam seus votos por uma legião de empregos, como fazem os políticos profissionais, dando-nos volta e meia a vontade de pedir calma, que vai dar para todo mundo, embora, levando-se em conta a voracidade e a eficiência com que saqueiam e dissipam, talvez o seguro seja estar entre os primeiros a abocanhar, pois de repente a fonte pode secar.

  

Saber votar, por outro lado, consola pouco os que acham que sabem. Todos os objetivos de todos os candidatos são sempre os mesmos. Construir um Brasil mais justo, mais igualitário, com cidadania. E porque tal, porque vira etc. e tal. É tudo a mesma coisa, tudo fácil de dizer. E assim, mesmo nós, os que achamos que sabemos votar, enfrentamos dificuldades de escolha. 

Não estou precisando de dentadura no momento, mas um parzinho de sapatos talvez caísse bem.


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Ou quem sabe um par de tênis de marca, hein?

Falando sério e indo direto ao assunto: VOTE NULO E QUE SE FODAM OS POLÍTICOS!






O ESPANTO: CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DA FILOSOFIA

[Texto de autoria de Moisés Efraym]


Quando nascemos, por termos desconhecimento total a respeito das coisas que nos cercam, desenvolvemos o hábito, ainda crianças, de nos admirarmos com tudo que se faz objeto de nossa sensibilidade. Na medida em que vamos nos desenvolvendo passamos a assimilar todo um "complexo conceitual" transmitido como referencial necessário à convivência social.

Esse contato, que tem um caráter exclusivamente sensível a princípio, põe a realidade circundante sempre no âmbito da experiência nova pela completa indisposição de parâmetros que estabeleçam um critério de identidade: as "coisas" são não apenas novas, mas também, e principalmemnte, diferentes entre si; nesse estágio, a criança percebe de forma mais apurada do que a maioria dos adultos que sequer existem duas pessoas iguais.




O "complexo conceitual" acima referido é internalizado de maneira quase imperceptível pela criança. Dessa forma vão moldando-se, num processo necessário, as relações entre o sensível (porta de entrada das impressões) e o racional (que respalda e ratifica o tal "complexo conceitual"), os quais identificam e perpetuam a realidade externa como um amontoado de coisas passíveis de fácil reconhecimento a partir de critérios internos de diferenciação.

A previsibilidade conseguida por intermédio de tais critérios proporciona ao indivíduo já "crescido" um asseguramento que tende a priva-lo da percepção do caráter mutável das coisas que este tem como certas, como dadas, como "já sabidas" (o estereótipo de beleza física eurocêntrico, por exemplo).




Para uma compreensão da realidade sob a ótica da filosofia faz-se necessário que desenvolvamos novos modos de abordagem que promovam a equivalência entre a razão (que registra) e a sensibilidade (que "absorve" os diversos aspectos do que nos circunda). Ambos, quando equilibradamente considerados, permitem a observação necessária à percepção adequada da realidade como movimento permanente de diferenciação de tudo que existe.

Uma vez alcançado esse estágio, o indivíduo desenvolve a condição que conduz à possibilidade de realização da filosofia - o espanto, a admiração originária - que nada mais é que um retorno à infância, com a vantagem de promover uma inocência com consciência. Esta é a condição de acontecimento e continuidade da filosofia como tal.

 

Como o "complexo conceitual" mostra-se necessário enquanto forma de apreensão da linguagem do real, a questão reside no fato de promover-se sua superação a um estágio consequente, que tem nas três metamorfoses de Nietzsche um ótimo referencial para sua compreensão.

O camelo tudo aceita, o leão tudo impõe, o menino tudo contempla. Quando se dá a realização da terceira metamorfose nasce a inocência consciente necessária à filosofia, nasce a possibilidade de realização da filosofia em sua plenitude.


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terça-feira, 29 de abril de 2014

SAUDADES DO FUTURO (1)


[Editado de um texto de Arnaldo Jabor publicado no Segundo Caderno do jornal O GLOBO]


Sempre falamos em "cultura brasileira", mas não sabemos exatamente o que é isso, hoje em dia. Cultura é o que? Uma senhora grega, de camisola, segurando uma tocha? Cultura é uma índia, negra e portuguesa, de cocar e saiote? Cultura é um museu erudito e paralítico que rima com "sepultura"? Fazemos boquinha elegante para falar em "cultura" mas sempre sobra um gosto de alguma coisa em crise, que deve ser salva.

Na tradição de bacharéis colonizados de cartola e fraque, sempre amamos as "coisas do espírito", "a alma minha gentil" ou o "vai-se a primeira pomba despertada", as poesias com que nos embriagávamos nos botequins da República Velha, em meio à febre amarela e à varíola. 

A impotência política para superar nosso atraso endêmico nos levou a uma supervalorização da "cultura artística". Era nossa ilusão e consolo: "somos pobres, mas com uma cultura rica...". Senti isso em minha juventude, quando um companheiro me disse: "Não temos nada, mas somos o sal da terra". Fazíamos arte, filmes, música como se salvássemos o país. Agora a web é uma cachoeira de criações artísticas. Acabam os poucos artistas criando para muitos.

Antes, o subdesenvolvimento nos dava uma "superioridade" sobre os "falsos problemas europeus", como o absurdismo do teatro de Beckett ou Ionesco, o "existencialismo alienado do social" ou o sinistro comercialismo americano. A pobreza era nossa maior riqueza. Vivíamos na divisão simplista entre "centro e periferia", colonia e metrópole, vítimas santificadas do imperialismo cruel.

Nossos defeitos institucionais seculares ficavam ocultos, já que a culpa era "dos outros". Chegamos a fazer a glamourização da incompetência. Era a poética da precariedade contra a técnica dos países ricos e "decadentes". Achávamos a miséria uma nova estética - o mito de que o tosco, o povo simples e até o burro são ungidos por uma "verdade sagrada".

Essa ideia reacionária rola até hoje, haja visto o carisma triunfal do ex-presidente operário. Minha geração, no cinema e na esquerda, achávamos que teríamos um futuro cultural que nos salvaria; havia um geist artístico em marcha a uma harmonia libertadora. Éramos os "sujeitos" que moldariam a História. Éramos hegelianos e não sabíamos.

No entanto, as mutações culturais mais visíveis (que não enxergávamos) vieram por "irrupções" de causas materiais, de relações de produção industriais e comerciais: a cultura do café e o Modernismo; o crash da bolsa em 29 contribuindo para nossa "identidade" na revolução de 30; a indústria fonográfica americana e o rádio projetando a música popular dos anos de ouro; a industrialização juscelinista possibilitando a arquitetura, a bossa nova, o Cinema Novo; a Philips e outras gravadoras veiculando a música dos anos 1960; a TV ensinando o povo a falar e a ver o país. Não éramos marxistas e não sabíamos.


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 Continua...

 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

PACIFICAÇÃO?


[Texto de autoria de Márvio dos Anjos publicado no jornal DESTAK em 25.04.2014]



O termo "pacificação" se consagrou, mesmo representando mais um desejo do que um fato. Houve redução da criminalidade em certas áreas da cidade. Mas ainda temos casos como o do bailarino DG, morto pelas costas no Pavão-Pavãozinho.

À lúcida mãe de DG, quem poderá falar que o morro está pacificado?

Precisamos lidar com o fato de que essas comunidades ocupadas vivem em estado de sítio. O sucesso seria que elas se transformassem em bairros, que tivessem vida de bairros, e não a impressão de uma normalidade patrocinada por uma contenção armada de fuzis.

O sempre ponderado secretário de Segurança José Mariano Beltrame jamais vendeu sua pacificação como milagrosa, mas já é tempo de vermos que o resultado da ocupação militar ainda não é paz, não efetuou prisões suficientes - o que fez os traficantes migrarem para outras regiões, como Niterói e a Baixada - e não merece o termo consagrado.

Não seria leviano a ponto de condenar totalmente a implantação das UPPs porque se trata do único programa que realmente diminuiu os índices de criminalidade. Mas a vida não se conta só por números. Histórias como a de DG mostram que a polícia ainda sobe um morro pacificado pronta para a guerra, num desmentimento categórico dessa paz armada.


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Pacificação ou ocupação militar? Estamos em guerra civil?


  

domingo, 27 de abril de 2014

O JESUS JUDEU (2)


[Trecho extraído e editado do capítulo 6 ("O Jesus dos Evangelhos Sinópticos: curandeiro e mestre carismático e entusiasta escatológico") do livro AS VÁRIAS FACES DE JESUS de autoria de GEZA VERMES, publicado pela Editora RECORD]



As leis alimentares (kosher versus não kosher)
constituem uma segunda área do suposto conflito de Jesus com a Torá de Moisés, mas a afirmativa de que ele aboliu a distinção entre puro e impuro está baseada numa incompreensão crassa de um dito sutil: "Não há nada no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro... Não entendei que tudo o que vem de fora, entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no coração, mas no estômago, e sai para a fossa?" (Mc 7:15, 18-19; Mt 15:11, 17-18). 

O significado patente dessas palavras é que a corrupção não vem pelo alimento enquanto tal, mas quando se negligencia profundamente uma proibição divina, uma interpretação ética costumeira de um preceito legal. Essa moralização da Lei se enraíza, sem contar os profetas bíblicos, no autor da Carta de Aristéia na primeira metade do século II a.C., segundo a qual Deus não é honrado por oferendas e sacrifícios, mas por pureza d'alma e convicções sagradas.

A mesma ideia é essencial ao ensinamento partilhado por Filo de Alexandria e por Jesus, que identifica os Dez Mandamentos como o epítome da Lei (Leis Especiais I,I; Mc 10:17-19; Mt 19:16-19; Lc 18:18-20), ou a assim chamada Regra de Ouro - "Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles" - que sob formas variantes vai de Tobias (4:15) e Filo (Hupothética 7:6) até Ilel, um destacado mestre judeu à virada da era (bShabbat 31a), e o próprio Jesus (Mt 7:12; Lc 6;31).

Para voltarmos às leis dietéticas, o comentário do editor do Evangelho de Marcos 7:19 - "Assim, ele declarava puros todos os alimentos" - é um comentário secundário que nada tinha a ver com Jesus, e só era significativo e benéfico para a igreja gentílica-cristã à qual o Evangelho era em última análise dirigido. A dificuldade da cristandade judaica com os convertidos gentios prospectivos nos Atos dos Apóstolos e a disputa de Paulo com Pedro em Antioquia demonstram que, na primeira geração cristã, ninguém estava ciente de que Jesus tivesse declarado todo alimento puro!

Tão espúria quanto as duas precedentes, a terceira prova da afirmação de Jesus da sua superioridade sobre a Lei reside em seus ditos reunidos no Sermão da Montanha, conhecidos como "antíteses" (Mt 5:21-48). Nestes, um antigo preceito do Velho Testamento, por exemplo, "Não matarás", é introduzido com as palavras, "Ouviste que foi dito aos antigos", e seguido pela proclamação de Jesus, "Eu, porém, vos digo" outra coisa, tal como "todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá que responder no tribunal" (Mt 5:21-2).

 Entretanto, quando objetivamente analisadas, as suas declarações reforçam e esclarecem, em vez de contradizerem a Torá. Ao proibir a raiva, Jesus não permite o assassinato, mas garante que a sua raiz seja arrancada.

Tomar as antíteses por uma "ruptura da letra da Lei", como fez Ernst Käsemann, um estudioso alemão do Novo Testamento, revela a extraordinária cegueira de que teólogos de um certo tipo são presa.



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A FILOSOFIA DE PLATÃO



Podemos reconhecer uma relação entre o culto grego da memória e a metafísica platônica na hipótese da reminiscência. Platão coloca o problema de como o homem, enquanto ser concreto que existe no tempo e no espaço, pode conhecer as essências incorpóreas e atemporais.

Tal possibilidade só é exequível se supomos que ele possui algo também incorpóreo e indestrutível, de natureza semelhante às 'Ideias', ou seja, uma alma, também pura forma imortal. Essa alma já teria contemplado as essências antes de se prender ao corpo ao qual está provisoriamente vinculada, no qual ela esquece aquele conhecimento anterior.

Entretanto, os sentidos apreendem objetos que são cópias imperfeitas daquelas essências que a alma contemplara, o que permite que ela vá se lembrando das 'Ideias'. Desta forma, o conhecimento seria, na verdade, reconhecimento, reminiscência, retorno, através de etapas sucessivas.




Segundo Platão, o mais elevado de todos os conhecimentos seria o conhecimento do Bem, que se atinge ao fim de uma escalada que leva às 'Ideias' ou essências. Este seria, como o sol, a fonte de toda a luz, fazendo com que os objetos possam ser conhecidos e que nós possamos conhecê-los. 

Assim, tal conhecimento seria superior à Arte, na medida em que esta permanece no nível das sensações, sendo desta forma, impossível a construção de um conhecimento seguro e estável à partir da mesma, uma vez que as sensações fornecem evidências apenas momentâneas e individuais.

Daí, temos que a Arte não passaria de mero simulacro, ou seja, cópia da cópia, uma vez que os objetos da Natureza só existem por participação em, ou imitações das 'Idéias' (o Demiurgo a tudo molda, baseado em modelos perfeitos e impecáveis). Por outro lado, a Arte lida com o Belo e está subordinada ao Bem e ao Verdadeiro. A beleza fica no domínio do sensível e este mantém-se na aparência, ao passo que o Verdadeiro e o Justo residem no interior das coisas.




A alegoria da caverna ilustra uma experiência interior que muitos se recusam a empreender. Mas não se deve reduzir esta experiência à mera libertação individual. O prisioneiro só se evade para voltar, pois é a volta que dá sentido à fuga. Saber em que mundo se vive permite que se viva nele de outra maneira, como homem livre e não mais como prisioneiro manipulado pelos exibidores de marionetes.

Mas é ainda mais difícil anunciar a boa nova da libertação. Quando o filósofo volta a descer até os prisioneiros corre o risco de não ser ouvido e, se insiste, de até ser morto, como o foi Sócrates.
Esta atitude de fidelidade ao conhecimento é o que diferencia a vida justa da vida injusta.


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sábado, 26 de abril de 2014

"GENTE COMO A GENTE" QUEM, CARA-PÁLIDA?


[Texto editado de autoria de Guilherme Fiuza]


Dilma Rousseff certa vez declarou que "queremos um país de classe média". Já estava na hora de eliminar a elite da vida brasileira. E não só pelo aspecto econômico. Foi profundamente incômodo ao país ser presidido por um intelectual cultivado, cheio de títulos acadêmicos. Dentre outros comportamentos elitistas, esse presidente acabou com o compadrio na área econômica do governo, impondo a virtude como critério. Ou seja: um desumano, insensível aos apelos de um amigo, parente, afilhado ou cabo eleitoral.

Nesse período, a economia brasileira saiu das trevas, mas o país só ficou à vontade quando foi entregue a um ex-peão. A nação ficou aliviada sob um presidente que empregava os companheiros, que não se importava em maltratar a língua, que se orgulhava de não ler jornais, que fazia o elogio da ignorância - ufanando-se da sua própria falta de estudos, ao cantar vitória sobre o antecessor diplomado.

Fora um certo sotaque fascista, até que a ideia do nivelamento geral de um povo poderia ter seus encantos. A erradicação da elite, a partir do postulado de Dilma Rousseff, traria benefícios imediatos ao funcionamento do país. Seria um país muito mais tolerante. Além das liberalidades no uso da língua portuguesa e do dinheiro público, a mentalidade média que emerge da sociologia governamental muda inteiramente o conceito de responsabilidades.

Tudo normal. Tudo médio. Inclusive os parâmetros de civilidade e honestidade.



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E que venha logo essa bendita CPI da Petrobrás: vergonha pouca é bobagem...





O JESUS JUDEU (1)



[Trecho extraído e editado do capítulo 6 ("O Jesus dos Evangelhos Sinópticos: curandeiro e mestre carismático e entusiasta escatológico") do livro AS VÁRIAS FACES DE JESUS de autoria de GEZA VERMES, publicado pela Editora RECORD]



A maioria dos títulos sob os quais Jesus foi abordado, especialmente "senhor", "profeta" e "Messias", implica uma função de professor, o que por sua vez suscita a questão da posição exata de Jesus em relação ao judaísmo tal como compreendido e praticado no seu tempo.

A tradição cristã nutrida por Paulo e João sempre afirmou que, como mensageiro de Deus, ele situava-se acima e considerava-se dissociado da degenerada religião judaica da Palestina do primeiro século, cujos representantes lhe deram, previsivelmente, uma recepção tão hostil. Assim, para justificar nossa posição básica, de que Jesus de Nazaré era inteiramente judeu em seus papéis de mestre, exorcista e pregador, profeta e filho de Deus, teremos de investigar os seus pronunciamentos sobre a Lei de Moisés, que está no coração da religião que ele ensinava e praticava.

Os evangelistas retratam Jesus implicitamente como um judeu profundamente ligado às leis e aos costumes de seu povo, e alguns dos seus ditos mais obviamente autênticos confirmam essa imagem. Os evangelhos atestam a sua presença nas sinagogas galiléias e no Templo de Jerusalém. Contam-nos que ele fez a refeição da Páscoa pouco antes de ser preso. Suas roupas eram como a dos fariseus (Mt 23:5), com as tradicionais franjas na orla da veste (Mt 9:20; Lc 8:44; Mc 6:56; Mt 14:36; Dt 22:12). O seu respeito pela legislação ritual é revelado na história do leproso já curado por ele, a quem ele ordenou submeter-se ao julgamento dos sacerdotes e oferecer o sacrifício prescrito no Templo (Mc 1:44; Mt 8:4; Lc 5:14).

Tal conduta está em perfeita harmonia com o ensinamento de Jesus sobre a validade permanente da Torá, que foi preservado em duas versões. A primeira está em Mateus: "Porque em verdade vos digo, até que passem o céu e a terra, não será omitido nenhum i, uma só vírgula da Lei" (Mt 5:18), e o segundo, quase idêntico, em Lucas: " É mais fácil passar o céu e a terra do que uma só vírgula cair da Lei" (Lc 16:17).

Mais uma vez, a melhor garantia da autenticidade dessa afirmação é a sua própria sobrevivência no Novo Testamento face ao profundo embaraço por ela causado na igreja antinomiana dos gentios, o que deu aos Evangelhos de Mateus e Lucas um lugar permanente.

Admitidamente, foram feitas tentativas, tanto na igreja primitiva, quanto no cristianismo posterior, de eviscerar a afirmação de Cristo da permanência da Torá, e de insinuar que a bifurcação dos caminhos entre o judaísmo centrado na Lei e a nova religião espiritual cristã teria sido iniciada pelo próprio Jesus.

Afirma-se que, para demonstrar a sua superioridade em relação à religião do Velho Testamento, ele desdenhou duas das obrigações mais fundamentais impostas pela Lei, a observância do Sabá e das regras dietéticas da Bíblia, e que se considerou maior do que Moisés, cujos preceitos sentiu-se livre para abolir e substituir. Nenhuma dessas acusações é capaz de resistir a um exame objetivo.

Em nossa discussão sobre Jesus como curandeiro e exorcista, já encontramos a crítica de que, ao curar os doentes no Sabá, Jesus quebrou a Lei. A questão de curar no dia de descanso é levantada explicitamente pelos próprios Evangelhos (Mc 3:4; Mt 12:10; Lc 6:9), bem como nos debates de rabinos fora do Novo Testamento. Os evangelistas fazem Jesus respondê-la afirmativamente através da sua ação, e isto está em conformidade com a opinião dos rabinos, para os quais salvar uma vida suplanta os preceitos do Sabá.

Em todo caso, a forma de curar através de palavras ditas ou pelo toque, que Jesus adotou, na verdade não contava como "trabalho" proibido no Sabá. Sabemos pelos evangelistas que a única questão que realmente preocupou as pessoas escrupulosas no seu ambiente galileu foi o grau de severidade de uma doença que pudesse justificar o "trabalho" terapêutico, por exemplo, de transportar e administrar remédios.

Mesmo a esse respeito, porém, o chefe de uma sinagoga citado por Lucas não pôs a culpa no curandeiro, mas naqueles que buscavam a cura no Sabá: "Há seis dias nos quais se deve trabalhar; portanto, vinde nesses dias para serdes curados, e não no Sabá!" (Lc 13:14).

Rabinos esclarecidos na Mixná defendem a leniência e defendem que se houvesse alguma dúvida sobre o caráter potencialmente letal de uma doença, já era o bastante para sobrepujar os preceitos do Sabá (mYomma 8:6). Na verdade, mesmo a afirmação aparentemente mais chocante de Jesus sobre o Sabá ser feito para o homem e não o homem para o Sabá (Mc 2:27) não excede a opinião expressa por um rabino do segundo século d.C.: "O Sabá vos foi entregue e não vós ao Sabá." (Mekihlta sobre Ex. 31:14).


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Continua... 




  

terça-feira, 22 de abril de 2014

ZÉ DO CAIXÃO




[Editado a partir de uma reportagem de Karla Monteiro publicada no Segundo Caderno do jornal O GLOBO em 12.02.2011]


Cultuado mais fora do Brasil, onde é conhecido como 'Coffin Joe', do que aqui, Mojica rende histórias sem fim. Barcinski e Finotti, autores da biografia publicada pela Editora 34, receberam menção especial do júri no festival de Sundance de 2001, com o documentário "Maldito - O estranho mundo de José Mojica Marins".

O personagem Zé do Caixão nasceu "no dia 11 de outubro de 1963, praticamente". Mojica adora duas palavras, que repete em quase todas as frases: praticamente e realmente. Zé do Caixão baixou num sonho. Ou num pesadelo. Na época, Mojica já era um cineasta com vários filmes no currículo, do faroeste à pornochanchada. O primeiro curta metragem é de 1945: "A mágica do mágico". E o primeiro longa, de 1958: "Sina de aventureiro".

Zé do Caixão estreou no hoje clássico "À meia-noite levarei sua alma". Por falta de atores, Mojica foi obrigado a incorporar o personagem, que, aliás, nunca desencorporou. Segundo ele, o Zé do Caixão tem até um nome de batismo: Josefel Zanatas. Nos sonhos do diretor, ele era um vulto que o arrastava até o próprio túmulo.

Mojica tornou-se famoso pelo estilo rude de filmar, baseado na improvisação, na falta de recursos técnicos e em histórias objetivas. Antes de iniciar a saga do Zé do Caixão, já flertava com o suspense. Havia fundado o estúdio Companhia Cinematográfica, depois Companhia Cinematográfica Apolo, no bairro do Brás, onde dava aulas de cinema e fazia testes, utilizando bichos como ratazanas e baratas, para "tirar a emoção, o horror dos atores". "À meia-noite levarei sua alma" marca o nascimento do gênero terror no Brasil.

De 1963 até meados dos anos 70, Mojica viveu o auge. Ganhou um programa na TV Tupi, era personagem de quadrinhos e possuía vários produtos licenciados com a marca Zé do Caixão. Em 1969, porém, começou a descer a ladeira. O marco foi a proibição pela censura do filme "O despertar da besta", considerado por muitos sua grande obra. Produtores e investidores desapareceram. Mojica não conseguia mais trabalhar. Entrou em depressão, passou a beber muito, em 1977 teve um enfarto que o deixou em coma por cinco dias e, nos anos 80, sumiu.


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segunda-feira, 21 de abril de 2014

ZARATUSTRA


[Editado do capítulo 1 do livro "O Zaratustra de Nietzsche" de autoria de Pierre Héber-Suffrin e publicado por Jorge Zahar Editor]


Por que iria um pensador alemão do século XIX falar-nos pela boca de um profeta iraniano do século VII antes de nossa era, e pôr-nos a sua escuta?

Nietzsche diz ter escolhido Zaratustra precisamente para que seu personagem diga "exatamente o contrário" do que disse o Zaratustra histórico. Assim, Nietzsche escolheu Zaratustra para opô-lo a Zaratustra.

E, de fato, ele os opõe radicalmente: de um lado, o papel do Zaratustra histórico consistiu, com efeito, na invenção de um dualismo de inspiração moral, dualismo que explicava todas as coisas pela ação de dois princípios em luta, dualismo moral para o qual um desses princípios é o Bem e o outro o Mal.

Essa invenção, Zaratustra a fez - segundo Nietzsche - extrapolando nossa experiência moral humana do bem e do mal, dando-lhes uma dimensão teológica (há um Deus Bem e um Deus Mal) e cosmológica (no universo, tudo se explica pela ação de um ou outro desses dois princípios, e por sua rivalidade).

Ora, por outro lado, precisamente, é esse dualismo e esse moralismo que Zaratustra, o personagem literário, vai rejeitar pois precisamente é a recusa desse dualismo e desse moralismo que constitui um ponto essencial do pensamento de Nietzsche.

Ele observa que Zaratustra foi o primeiro a pregar um dualismo e um moralismo que, recebidos depois, como herança, da Bíblia e da Grécia, impregnarão toda a nossa cultura.

Mas, por outro lado, o que interessa a Nietzsche é principalmente o fato de que Zaratustra foi o primeiro a VER esse dualismo moralista, o primeiro a descobrir claramente o fundamento moral de sua metafísica, a operar deliberadamente essa transposição do ético para o cósmico, a discernir a "genealogia" moral da sua concepção do mundo.

Ora, em linguagem nietzschiana, esse discernimento é sinceridade. Ser lúcido é, pois, ser sincero em relação a si mesmo, ter a coragem de suas opiniões, a coragem da verdade; é ter, antes da coragem de dizê-las, a coragem de pensá-las, de VÊ-LAS.

É por isso que Nietzsche o escolheu; em razão dessa sinceridade-lucidez que caracteriza o próprio Nietzsche, dessa sinceridade-lucidez que permitiu ao Zaratustra real ver o fundamento moral de sua metafísica e que, agora, o obriga logicamente a tornar-se o exato contrário do que ele era: o Zaratustra nietzschiano.   



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domingo, 20 de abril de 2014

MAIS CERVEJA, MENOS PÃO


[Editado a partir de um artigo publicado em GALILEO nº 223 de fevereiro de 2010]



Patrick McGovern é diretor do Laboratório Arqueológico Biomolecular do Museu da Universidade da Pensilvânia e autor do livro 'Uncorking the Past: The Quest for Wine, Beer and Other Alcoholic Beverages'.

Diferentemente do senso comum, que costuma ligar os bêbados a uma horda de bárbaros, McGovern defende que o álcool teve um importante papel no estabelecimento das primeiras civilizações. "Quando você tem que produzir álcool suficiente para toda a sua população, é necessário se assentar em algum lugar por todo o ano, cuidar das plantas." Com o tempo, os humanos começaram a construir casas, e esses assentamentos se tornaram vilas.




"Nossa agricultura surgiu para produzir álcool. Os primeiros assentamentos humanos surgiram depois do cultivo da cevada, e é mais fácil produzir cerveja do que pão, além de ser mais nutritiva." McGovern cita o exemplo do milho na América Latina. Antes de ser domesticado, o grão não servia para ser comido, ele só era consumido transformado em bebida fermentada. "Se olharmos para os grãos como arroz, cevada, trigo, milho e sorgo, eles todos podem ser transformados em bebidas. A motivação de sua domesticação foi poder consumi-los na forma de bebida alcoólica. Só depois passamos a fazer pães e massas", diz. 


 


Avançando um pouco no tempo, McGovern aponta o comércio das bebidas como grande impulsionador de intercâmbios culturais. "Enquanto os fenícios levavam o vinho em seus barcos, espalhavam sua cultura pelo Mediterrâneo." Eram vendidas a altos preços aos nobres egípcios e europeus - inclusive para os italianos e franceses, que mais tarde seriam os grandes produtores da bebida. Eles não transportavam só a cultura do vinho, mas sua indústria, o trabalho com metais e a cerâmica. Além, é claro, da mais importante contribuição de sua cultura para o mundo: o alfabeto latino.





O vinho tornou essas trocas bem mais fáceis. "Não acho que toda transferência cultural e tecnológica tem de ser pela força, ela pode ser guiada simplesmente pelo prazer. Quando vamos para outros países experimentar suas bebidas, as pessoas podem ser muito amigáveis, ficamos interessadas por suas ideias e cultura", diz McGovern.


POST-SCRIPTUM:


Quem já leu os quadrinhos de 'Astérix, o gaulês' tem uma boa ideia a respeito do que o professor McGovern está falando...