domingo, 25 de maio de 2014

FARIAS BRITO E O RISCO DO PENSAMENTO


[Texto editado de autoria de Sérgio de Oliveira Souza publicado em TRAMA - Revista dos pós-graduandos em Filosofia pela UERJ]


A história do pensamento no Brasil é enriquecida pelas inegáveis contribuições de um cearense obstinado, Raimundo de Farias Brito (1862-1917), que assume seu amor pelo saber, elevando-o à paixão. 

É de fato apaixonadamente que ele se dedica à filosofia, por mais que tentem desestimulá-lo ou até impedi-lo. Queixa-se da influência positivista que passa a dominar com Benjamin Constant e que retira a filosofia dos currículos oficiais do ensino brasileiro.

Mas a sua paixão é mais forte e ele resolve que tem o direito de dedicar-se a esta "inutilidade", assim como os outros se dedicam às suas preferências.

Através dele, enquanto procura da "finalidade do mundo", pensadores como Voltaire, Schopenhauer, Kant, Hegel, Feuerbach, Renan, Hamilton, Stuart Mill, Bergson e outros vão sendo apresentados aos leitores (talvez poucos) da época.

Farias Brito trabalha com dois pontos principais: natureza e consciência. Seleciona três pares de diferenças para os quais entende que se deve buscar, pela filosofia, explicação nos universais: vida e morte, prazer e dor, direito e dever. Não era um pessimista, mas estudou essa corrente.

Volta a Sócrates para falar da morte como necessária e a Salomão - citando o Eclesiastes (12,8): "vaidade das vaidades, tudo vaidade". Considera as recíprocas relações entre moral, filosofia e direito. Afirma que a metafísica é uma necessidade  fundamental do espírito humano. Acusa o erro positivista de tentar eliminar a metafísica.

A filosofia é conhecimento em desenvolvimento (in fieri) e a ciência é conhecimento já feito. Entende que filosofia e Poesia andam juntas, pois têm as mesmas fontes ocultas no espírito, sendo que a primeira tem maior extensão, maior alcance.

O nosso organismo dá origem a dois tipos de fenômeno: físicos e psíquicos. Os primeiros dependem das leis do movimento, espaço e tempo e os outros dos fenômenos da consciência (sentimento e conhecimento). A morte é apresentada como solução e garantia de continuidade para a vida e também tem a sua lógica. No entanto, a vida é a verdadeira finalidade do mundo. Toda evolução do cosmo tende para ela, mas em certa ordem: mecanismo, vegetação, animalidade e homem.

O homem, porém, apesar de citado por último na ordem acima, é elemento indispensável para a filosofia, pois nele "se manifesta o fenômeno fundamental da consciência (...) a ação com suas condições formais - o sentimento e o conhecimento."

Para Farias Brito, a filosofia, a religião e a ciência não devem se hostilizar umas às outras, pois têm papéis definidos na sociedade e na formação da consciência e na finalidade universal, mas não são excludentes. A corrente positivista, dominante, está errada ao tentar impor apenas a ciência como referência para o desenvolvimento humano.

A filosofia é "o espírito interrogando a realidade e elaborando o conhecimento". A ciência, por sua vez, tem por fim "estabelecer o domínio do homem sobre a natureza". Para filosofar é necessário imaginação, tem-se que ler "no fundo da consciência", na busca do ideal e no sonho mais legítimo, "a verdade no pensamento, em correspondência com a luz da natureza".

A luz porém não será alcançada sem o auxílio da fé. Mas a fé também é um dos alvos da falsa ciência que tenta matá-la. Então é preciso mantê-la viva. Com que autoridade? Da consciência que sou. Aí está uma "Psicologia Transcendente" que também inclui o questionamento dos questionamentos: "O que há após a morte?" A ciência aqui revela-se incapaz e desautorizada, mas a filosofia auxilia a fé viva que responde através de seus fatos inegáveis ainda que inexplicáveis para a razão.


POST-SCRIPTUM:


A filosofia da consciência de Farias Brito nada perde em seriedade e capacidade argumentativa a qualquer outro pensador que possa ser tomado como referência (a grande maioria estrangeira e imposta aos alunos dos cursos de filosofia).

   

A DECADÊNCIA DA CORRUPÇÃO


[Texto de Millôr Fernandes publicado originalmente em O PASQUIM nº 281]


Pode ser que esta discussão não tenha acontecido, ou tenha, pode ser que eu seja especialista em leis, pode ser que não seja, pode ser que vocês acreditem no que escrevo, pode ser que não. Tudo pode ser e pode não ser ao mesmo tempo. Hamlet perdeu seu tempo e seu latim.

O fato é que meus amigos - que chamaremos de Paulo Pai e Paulo Filho, ou Paulo Sênior e Paulo Junior, para os que preferem anglicismos, Paulo I e Paulo II, para os que ainda suspiram pela monarquia, - tiveram uma discussão.

Paulo Filho estava fazendo 20 anos, uma idade absolutamente provecta para quem, cinco anos antes tinha apenas 15 e está portanto, 1/3 mais velho, e Paulo Pai tocou no delicado assunto de escolha de uma carreira.

Não se tratava mais "do que é que você vai ser agora que já está demasiado crescido" (Paulo Filho tem 1 metro e 83). Pois embora Paulo Pai estime muito o filho, não é dado aos pais, mesmo os mais estimativos, sustentar os estimados filhos até a morte - comumente morte deles próprios, pais, porém, algumas vezes, dos referidos filhos, pois ninguém é tão velho que não possa viver mais um ano nem tão jovem que não possa morrer já.

Pois, então, dialogaram:
- Bem, meu pai - disse Paulo Filho - creio que, ao escolher uma profissão, devo ser prático. Tenho que pensar em algo que, acima de tudo, dê dinheiro.

- Acho que não, meu filho - disse Paulo Pai - o fundamental é o espírito. Você deveria ser um artista.

- Artista, pai? Pouco rendoso. Além do que, e a vocação?

- Bem, se você não quer ser um artista, então seja um pesquisador social, um professor, um filantropo, qualquer atividade que se dirija, enfim, ao bem público.

Paulo Filho pensou que o pai estava ironizando e mostrou-o em palavras:

- Está ironizando, meu pai? Eu estou falando sério.

Paulo Pai, não compreendendo como o filho não via a seriedade de suas propostas, parou de sugerir. Paulo Filho, atencioso, analisou minuciosamente as propostas do pai e mostrou-lhe que eram todas impraticáveis.

Paulo Pai que, como todos os pais, é altamente sensível às razões dos filhos, concordou. E a coisa estava nesse impasse quando Paulo Filho teve uma brilhante ideia. Por que ele não poderia se dedicar à prática do crime, que é uma profissão, afinal, livre, rendosa e aventurosa?

Paulo Pai estremeceu diante da brilhante argumentação do filho, concordou que a proposta, partida de um jovem de alta classe média era, pelo menos, original. E concordou. Nesse instante é que me procuraram, não sei se pela minha sabedoria ou se pelos meus livros de consulta, outra forma da mesma coisa.

A primeira dúvida era, evidentemente, que tipo de especialidade, dentro do vasto ramo Crime. Paulo Filho deveria seguir: o delito leve, atos não distantes da boa conduta social, coisas como dolo, peculato e simples picaretagem ou deveria entrar mesmo no crime mais amplo, incluindo assalto, violência e morte?

Paulo Filho imediatamente colocou a sua posição: "Quero logo deixar bem claro que não desejo dedicar minha vida a nada que não seja intenso e absorvente. Se vou abraçar o crime não pretendo ficar no delito leve, que qualquer leigo pode praticar e que pode ser até cuspir na calçada e chegar atrasado no emprego. Não, se vou me dedicar ao crime, quero me dedicar ao crime. E crime mesmo, para mim, é assassinato."

- Ótimo - disse eu - isso torna tudo mais fácil. Temos definição. Mas, falar em definição, você sabe o que é Assassinato? Assassinato que em inglês se chama 'murder', no latim 'homicidium'...

- Não poderíamos passar por cima da erudição, seu Millôr? - me pediu Paulo Filho. Passei por cima e concluí: "... e consiste em tirar a vida de um ser humano, ilegal e intencionalmente. Passo a explicar ponto por ponto."

- Não precisa - disse Paulo Filho - explique apenas "ilegal e intencionalmente".

Peguei meus códigos mas, ao fim de meia hora de explicações, ambos os Paulos mostravam-se visivelmente cansados e desiludidos: "Realmente não temos condições econômicas para enfrentar esse tipo de atividade."

- Acho que vocês tem toda razão - concordei. - O assassinato é uma atividade extremamente mais complicada do que parece à primeira vista, e, se Paulo Filho vai ingressar nela, tem que estar técnica e teoricamente preparado, porque o menor descuido pode levá-lo a praticar uma morte não apenas desculpável, mas mesmo justificável, chegando até, em alguns dos casos, a ser socialmente desejável.

- O senhor está se referindo a atividade tipo Esquadrão da Morte?

- Não, estou me referindo a Eutanásia. Por que não tenta o roubo?

- É uma boa ideia - disse Paulo Filho, não porque a ideia tivesse partido de mim mas porque, evidentemente, tudo conduzia a isso. - Como é que se define?

- Roubo - disse eu - é o ato de se apropriar de qualquer bem material alheio, com emprego de força ou violência, com invasão de domicílio, estabelecimento comercial, templo...

Parei, respirei e disse a Paulo Filho.

- Não quero desanimá-lo, mas só nesse código, o roubo tem 37 páginas de definição. Tem também, importantíssimo, um Mens Rea.

- O que é isso?

- Uma coisa parecida com ilegal e intencionalmente - chutei - Quer que leia? São só seis páginas.

- Não, não, Millôr, deixa, - me respondeu Paulo Filho decepcionado - é tudo muito complicado. Acho que meu pai tem razão. Vou ser um homem de bem.


POST-SCRIPTUM:


O crime não compensa mesmo hoje em dia?