terça-feira, 2 de novembro de 2010

O IMAGINÁRIO II



[CONCLUSÃO da obra “O Imaginário: Ensaio Acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem”, de Gilbert Durand; tradução de René Eve Levié; Coleção 'Enfoques – Filosofia', da editora Difel; 1998]



Foi assim que, em meados do século 20, os trabalhos pluridisciplinares convergentes permitiram tanto a criação de um balanço heurístico rico em estudos do imaginário como apresentar os conceitos-chaves de uma abordagem metódica das representações do Universo, ou de uma “mitodologia”. O pluralismo taxionômico, a tópica e a dinâmica permitem abarcar as bacias semânticas que articulam aquilo que é “próprio do homem”, o imaginário, com uma precisão mensurável. Este define-se como uma re-presentação incontornável, a faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra.

Contudo, não poderíamos concluir com esta constatação triunfalista. Verdade que “a civilização da imagem” permitiu a descoberta dos poderes da imagem há tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os mecanismos de formação, as deformações e as elipses da imagem. Por sua vez, a “explosão do vídeo”, fruto de um efeito perverso, está prenhe de outros “efeitos perversos” e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens.

Em primeiro lugar porque ela impõe seu sentido a um espectador passivo, pois a imagem “enlatada” anestesia aos poucos a criatividade individual da imaginação, como já apontava Bachelard ao dar preferência à “imagem literária” sobre qualquer outra imagem icônica mesmo animada como a de um filme.

Portanto, a imagem “enlatada” paralisa qualquer julgamento de valor por parte do consumidor passivo, já que o valor depende de uma escolha; o espectador então será orientado pelas atitudes coletivas da propaganda; é a temida “violentação das massas”. Este nivelamento é perceptível no espectador de televisão, que engole com a mesma voracidade, ou melhor, com a mesma falta de apetite, espetáculos de “variedades”, discursos presidenciais, receitas de cozinha e notícias mais ou menos catastróficas... É o mesmo “olho de peixe morto” que contempla as crianças que morrem de fome na Somália, a “purificação étnica” na Bósnia ou o arcebispo de Paris subindo a escadaria da Basílica de Montmartre carregando uma cruz... Esta anestesia da criatividade do imaginário e o nivelamento dos valores, numa indiferença espetacular, são reforçados por outro e último perigo.

Trata-se do anonimato da “fabricação” destas imagens. Elas são distribuídas com tanta generosidade que escapam de qualquer “dignitário” responsável, seja ele religioso ou político, interditando assim qualquer delimitação e qualquer estado de alerta, permitindo, portanto, as manipulações éticas e as “desinformações” por produtores não-identificados. A famosa “liberdade de informação” é substituída por uma total “liberdade de desinformação”. Sub-repticiamente, os poderes tradicionais (éticos, políticos, judiciários e legislativos...) parecem ser os tributários de uma única veiculação de imagens “pela mídia”.

Não deixa de ser paradoxal que tal “poder público”, que se tornou absoluto por técnicas sofisticadas que ele utiliza e por quantias colossais de dinheiro que ele drena, seja abandonado ao anonimato, quando não ao oculto. De modo mais geral, o problema concreto da ruptura entre o poder da mídia e os poderes sociais está ligado ao excesso de “informações” (no sentido muito amplo, formações e desinformações, inclusive) das estruturas das instituições. Como se sabe, por natureza a informação (L. Brouillin) é não-entrópica – isto é, ela aumenta indefinidamente, sem conter em si mesma o germe da sua usura – enquanto as instituições, como qualquer construção humana que precisa gastar suas energias, são entrópicas, isto é, condicionadas ao desaparecimento e a morte. Então, a pletora indefinida de informações poderia ser um fator de entropia para as instituições sociais que ela desestabiliza... Constatamos que quanto mais uma sociedade é “informada” tanto mais as instituições que a fundamentam se fragilizam...

Um perigo tríplice para as gerações do “zapping”: perigoso quando a imagem sufoca o imaginário, perigoso quando nivela os valores do grupo – seja de uma nação, cantão ou “tribo” – e perigoso quando os poderes constitutivos de toda sociedade são submersos e erodidos por uma revolução civilizacional que escapa ao seu controle... Ao menos se formou – como o demonstramos ao longo destas páginas – um “magistério” discreto de sábios competentes aos quais “os políticos”, aqueles que ainda pretendem “governar” os grupos sociais, deveriam prestar atenção...



POST-SCRIPTUM:




Pouco mais a acrescentar, além de recomendar a leitura da postagem O Imaginário I (com a 'Introdução' da obra), algumas páginas atrás e, é claro, o próprio livro de Gilbert Durand...