[Alain Badiou; O Ser e o Evento; Introdução; JZE; Editora UFRJ]
Sei bem que a tese da identidade entre matemáticas e ontologia não convém nem aos filósofos nem aos matemáticos.
A "ontologia" filosófica contemporânea está inteiramente dominada pelo nome de Heidegger. Ora, para Heidegger, a ciência, de que a matemática não é distinguida, constitui o núcleo duro da metafísica, porquanto ele a dissolve na própria perda desse esquecimento em que a metafísica, desde Platão, havia fundado a certeza de seus objetos: o esquecimento do ser. O niilismo moderno, a neutralidade de pensamento têm por signo maior a onipresença técnica da ciência, a qual dispõe o esquecimento do esquecimento.
É pouco, portanto, dizer que as matemáticas - que, ao que eu saiba, ele só menciona lateralmente - não são, para Heidegger, uma via de acesso à questão original, o vetor possível de um retorno à presença dissipada. Ao contrário, elas são a própria cegueira, a grande e maior potência do Nada, a exclusão do pensamento pelo saber. É sintomático, de resto, que a instauração platônica da metafísica tenha sido acompanhada de um estabelecimento das matemáticas como paradigma. Assim, para Heidegger, pode se indicar desde a origem que as matemáticas são interiores à grande "virada" do pensamento que se efetua entre Parmênides e Platão, e pela qual o que estava em posição de abertura e de velamento se fixa e se torna, ao preço do esquecimento de sua própria origem, manejável na forma da Ideia.
O tema do debate com Heidegger dirá respeito simultaneamente, portanto, à ontologia e à essência das matemáticas, depois, por via de consequência, ao que significa que o lugar da filosofia seja "originalmente grego". Podemos abrir assim o desenvolvimento:
1. Heidegger ainda continua submetido, até em doutrina da retirada e do des-velamento, ao que, de minha parte, considero ser justamente a essência da metafísica, ou seja, a figura do ser como entrega e dom, como presença e abertura, e a da ontologia como proferição de um trajeto de proximidade. Chamarei poético esse tipo de ontologia, povoada pela dissipação da Presença e a perda da origem. Sabemos que papel desempenham os poetas, de Parmênides a René Char, passando por Hölderlin e Trakl, na exegese heideggeriana. Na Teoria do Sujeito, quando eu convocava, para os nós da análise, Ésquilo e Sófocles, Mallarmé, Hölderlin ou Rimbaud, era por seguir seus passos que eu me esforçava.
2. Ora, à sedução da proximidade poética - a que sucumbo, mal a nomeio -, oporei a dimensão radicalmente subtrativa do ser, excluído não só da representação, mas de toda apresentação. Direi que o ser, enquanto ser, não se deixa aproximar de maneira alguma, mas somente suturar em seu vazio à aspereza de uma consistência dedutiva sem aura. O ser não se difunde no ritmo e na imagem, não reina sobre a metáfora; é o soberano nulo da inferência. A ontologia poética, que - como a História - está no impasse de um excesso de presença em que o ser se esquiva, deve ser substituída pela ontologia matemática, em que se realizam, pela escrita, a des-qualificação e a inapresentação. Seja qual for o preço subjetivo disso, a filosofia deve designar, porque é do ser-enquanto-ser que se trata, a genealogia do discurso sobre o ser - e a reflexão possível de sua essência - em Cantor, Gödel ou Cohen, mais que em Hölderlin, Trakl ou Celan.
3. Há, por certo, uma historicidade grega do nascimento da filosofia, e indubitavelmente essa historicidade é atribuível à questão do ser. No entanto, não é no enigma e no fragmento poético que a origem se deixa interpretar. Essas sentenças pronunciadas sobre o ser e o não-ser na tensão do poema são encontradas igualmente na Índia, na Pérsia ou na China. Se a filosofia - que é a disposição para designar onde intervêm as questões conjuntas do ser e d'o-que-advém - nasce na Grécia, é porque aí a ontologia estabelece, com os primeiros matemáticos dedutivos, a forma obrigatória de seu discurso. É o intricamento filosófico-matemático - legível até no poema de Parmênides pelo uso do raciocínio apagógico - que faz da Grécia o sítio original da filosofia, e define, até Kant, o domínio "clássico" de seus objetos.
No fundo, afirmar que as matemáticas efetuam a ontologia desagrada aos filósofos porque essa tese os despoja por completo do que continuava a ser o centro de gravidade de sua fala, o último refúgio de sua identidade. As matemáticas, de fato, não têm hoje necessidade alguma da filosofia, e assim, podemos dizer, o discurso sobre o ser se perpetua "sozinho". É característico, aliás, que esse "hoje" seja determinado pela criação da teoria dos conjuntos, da lógica matemática, e depois da teoria das categorias e dos topoi. Esse esforço, ao mesmo tempo reflexivo e intramatemático, torna a matemática segura o bastante do seu ser - embora ainda cegamente - para atender doravante às necessidades de seu avanço.