domingo, 22 de agosto de 2010

A QUESTÃO PITAGÓRICA




[Capítulo I do livro “PITÁGORAS E OS PITAGÓRICOS – UMA BREVE HISTÓRIA” (Ed. Loyola, S. Paulo, 2007 – ISBN: 978-85-15-03301-0), da autoria de Charles H. Kahn, professor de filosofia na University of Pennsylvania, especialista em Filosofia Antiga e História da Teoria Política]



Pitágoras não é apenas o nome mais famoso na história da filosofia antes de Sócrates e Platão; ele é também uma das figuras mais fascinantes e misteriosas da Antiguidade.

Pitágoras foi celebrado nas tradições antigas como matemático e filósofo da matemática, e seu nome continua associado a um importante teorema da geometria plana. Aristóteles afirma que a própria filosofia de Platão foi profundamente influenciada pelo ensinamento pitagórico(1), e autores posteriores consideraram Pitágoras o criador da tradição platônica na filosofia. Na literatura da Antiguidade tardia, Pitágoras surge como um gênio único, o pai fundador da matemática, da música, da astronomia e da filosofia.

Um platônico moderno, o matemático e filósofo do século XX A. N. Whitehead, descreveu Pitágoras como o primeiro pensador a valorizar a função das idéias matemáticas no pensamento abstrato: “Ele insistiu na importância da máxima generalidade no raciocínio e percebeu a importância do número como auxiliar na construção de qualquer representação das condições envolvidas na ordem da natureza”(2).

Whitehead está ecoando os antigos relatos que creditavam a Pitágoras a invenção da própria noção de filosofia, a primeira descrição da natureza como um cosmos ou todo ordenado, a descoberta da esfericidade da Terra, o desenvolvimento da teoria dos proporcionais na matemática, a identificação dos cinco sólidos regulares e a descoberta das razões numéricas subjacentes às concordâncias musicais básicas(3). Como ele é representado como a maior mente científica da Grécia primitiva, se não de toda a Antiguidade, seus admiradores antigos vieram a enxergá-lo como a fonte de toda a sabedoria, o “príncipe e pai da filosofia divina”, nas palavras de Jâmblico(4).

Há, porém, o outro lado da imagem. Algumas das primeiras referências a Pitágoras são ambíguas ou satíricas. Heráclito ataca-o como charlatão inteligente: seu saber é grande, mas sua sabedoria é fraudulenta(5). Eduard Zeller, na sua grande história da filosofia grega, publicada no século XIX, reconheceu que a comunidade pitagórica era antes de tudo uma seita e culto, e que, no primeiro século após sua morte, Pitágoras era conhecido, acima de tudo, pelo ensinamento da imortalidade e da reencarnação(6). Zeller era cético quanto às conquistas científicas de Pitágoras, e seu ceticismo foi reforçado pelo trabalho crítico de vários estudiosos mais recentes.

Mas o julgamento mais extremado foi o de Erick Frank, que afirmou que “todas as descobertas atribuídas ao próprio Pitágoras ou aos seus discípulos por autores posteriores foram, na realidade, a conquista de certos matemáticos do sul da Itália na época de Platão”, um século inteiro após Pitágoras, e que estes matemáticos não tinham nenhuma ligação essencial com os "pitagóricos genuínos que são atestados (...), desde o século VI, como uma seita religiosa similar àquela dos órficos”(7).

Uma conclusão muito mais moderada, mas tendendo na mesma direção, foi obtida por Walter Burkert, em seu monumental estudo Weisheit und Wissenschaft, publicado em 1962 (com uma tradução revista para o inglês em 1972), que transformou nossa compreensão das tradições antigas em torno de Pitágoras e sua escola(8). Burkert rastreia a cosmologia pitagórica e sua filosofia dos números, relatadas por Aristóteles, até o tempo de Filolau, em meados ou fins do século V, mas não encontra nenhum indício que o ligue ao fundador da escola. O próprio Pitágoras, na visão de Burkert, é uma figura xamanística, um líder espiritual e organizador carismático (como Moisés, talvez), que exerceu uma grande influência na vida cívica da Magna Grécia, mas que não contribuiu com nada para a matemática ou a filosofia.

Há dois problemas distintos aqui. Um é a questão estritamente histórica referente à extensão de nosso conhecimento ou nossa ignorância a respeito de Pitágoras e sua escola. O outro é uma questão filosófica mais complexa, referente ao conceito mesmo do que seja “pitagórico” e sua reverberação ao longo dos tempos. Por que a figura de Pitágoras atingiu tamanho prestígio? E em que sentido certos aspectos influentes da obra de Platão são peculiarmente “pitagóricos”?

Burkert demonstrou conclusivamente que a concepção de filosofia pitagórica que é tida como certa na Antiguidade tardia é essencialmente o trabalho de Platão e de seus discípulos imediatos. Mas por que estes pensadores eram atraídos por Pitágoras e por que é justamente o elemento pitagórico no pensamento de Platão que prevaleceu tão poderosamente na Antiguidade e que ressurge em tantos desenvolvimentos modernos na ciência e nas artes?

Há dois aglomerados de idéias bem diferentes que explicam a persistente vitalidade da tradição pitagórica. O primeiro, enfatizado em nossa citação de Whitehead, é a tentativa de compreender e explicar a natureza das coisas em termos matemáticos. Como relata Aristóteles, os pitagóricos começam observando as razões numéricas das consonâncias musicais ou harmoniai e, ao encontrarem muitos pontos de correspondência entre os números e o mundo, concluíram que “o céu todo é harmonia e número”(9). Esta noção de uma rede de ligações entre a música, a matemática e os fenômenos celestes, que é resumida na noção da música das esferas, constitui um dos dois princípios fundamentais do pensamento pitagórico.

O outro aglomerado de idéias é a concepção da alma como imortal, e portanto potencialmente divina, já que na tradição grega a imortalidade é o atributo distintivo dos deuses. No pensamento pitagórico, a imortalidade é concebida em função da transmigração das almas (com a noção relacionada de parentesco entre todos os seres viventes) e também na possibilidade de purificação e libertação do ciclo do renascimento, da escravidão da forma corporal. (É esta concepção do pós-vida que é comum às tradições órfica e pitagórica.) Essa visão pitagórica da alma é desenvolvida mais sistematicamente no Fédon de Platão, mas surge também na doutrina da recordação em outros diálogos e nos mitos platônicos do julgamento e da preexistência no Fédon, na República e no Fedro.

Por outro lado, a concepção matemático-musical do cosmos recebe sua expressão mais definitiva no Timeu de Platão, no qual a alma do mundo é estruturada pelas razões musicais e o corpo do mundo é organizado a partir de triângulos elementares. A engenhosa geometria e a elaborada aritmética do Timeu são certamente invenção do próprio Platão, assim como a reinterpretação da recordação e da imortalidade em função da compreensão cognitiva das Formas eternas é do próprio Platão. Mas em ambos os casos Platão está trabalhando com temas que, na origem, são inequivocamente pitagóricos.

E foi primariamente por meio destes dois diálogos, o Fédon e o Timeu, que as idéias pitagóricas tornaram-se uma influência tão poderosa no pensamento de séculos posteriores, não apenas na Antiguidade, mas, novamente, no Renascimento e para além, chegando até o nosso tempo.

O envolvimento mútuo das tradições platônica e pitagórica é muito mais complexo e extenso do que isto, como veremos. Mas o Fédon e o Timeu podem servir como emblemas para o que é mais vital e duradouro na contribuição pitagórica para o pensamento ocidental: por um lado, uma compreensão matemática do mundo da natureza; por outro lado, uma concepção do destino humano que aponta para além do mundo visível e para além do corpo mortal, para uma forma superior de vida. É a combinação destas duas concepções que é distintamente pitagórica, mas também distintamente platônica.



(1) ARISTÓTELES, Metafísica, A 6.


(2) A. N. WHITEHEAD, Science and the Modern World, New York, Macmillan, 1925, 41.


(3) Ver, por exemplo, Diógenes LAÉRCIO, VIII 8 e 48; JÂMBLICO, Vita Pythagorica 58, 115-121, 159.


(4) JÂMBLICO, VP 2.


(5) HERÁCLITO, fr. 129: “Pitágoras, filho de Mnesarco, perseguiu a investigação (historie) mais longe do que qualquer outra pessoa e, escolhendo aquilo de que gostava destas composições, produziu uma sabedoria própria, muito saber (polymatheie) e velhacaria ardilosa (kakotechnie)”.


(6) E. ZELLER, Die Philosophie der Greichen in ihrer geschichtlichen Entwicklung, Leipzig, 1892, I.i, 325.


(7) E. FRANK, Platon und die sogenannten Pythagoreer, Halle, 1923, vi.


(8) W. BURKERT, Lore and science in ancient pythagoreanism [tradução inglesa de E. L. Minar Jr., revista pelo autor], Mass., Cambridge, 1972 [Ed. original alemã: Weisheit und Wissencraft: Studien zu Pythagoras, Philolaos und Platon, Nürnberg, 1962].


(9) ARISTÓTELES, op. cit., A 6, 986a3.