domingo, 27 de abril de 2014

O JESUS JUDEU (2)


[Trecho extraído e editado do capítulo 6 ("O Jesus dos Evangelhos Sinópticos: curandeiro e mestre carismático e entusiasta escatológico") do livro AS VÁRIAS FACES DE JESUS de autoria de GEZA VERMES, publicado pela Editora RECORD]



As leis alimentares (kosher versus não kosher)
constituem uma segunda área do suposto conflito de Jesus com a Torá de Moisés, mas a afirmativa de que ele aboliu a distinção entre puro e impuro está baseada numa incompreensão crassa de um dito sutil: "Não há nada no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro... Não entendei que tudo o que vem de fora, entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no coração, mas no estômago, e sai para a fossa?" (Mc 7:15, 18-19; Mt 15:11, 17-18). 

O significado patente dessas palavras é que a corrupção não vem pelo alimento enquanto tal, mas quando se negligencia profundamente uma proibição divina, uma interpretação ética costumeira de um preceito legal. Essa moralização da Lei se enraíza, sem contar os profetas bíblicos, no autor da Carta de Aristéia na primeira metade do século II a.C., segundo a qual Deus não é honrado por oferendas e sacrifícios, mas por pureza d'alma e convicções sagradas.

A mesma ideia é essencial ao ensinamento partilhado por Filo de Alexandria e por Jesus, que identifica os Dez Mandamentos como o epítome da Lei (Leis Especiais I,I; Mc 10:17-19; Mt 19:16-19; Lc 18:18-20), ou a assim chamada Regra de Ouro - "Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles" - que sob formas variantes vai de Tobias (4:15) e Filo (Hupothética 7:6) até Ilel, um destacado mestre judeu à virada da era (bShabbat 31a), e o próprio Jesus (Mt 7:12; Lc 6;31).

Para voltarmos às leis dietéticas, o comentário do editor do Evangelho de Marcos 7:19 - "Assim, ele declarava puros todos os alimentos" - é um comentário secundário que nada tinha a ver com Jesus, e só era significativo e benéfico para a igreja gentílica-cristã à qual o Evangelho era em última análise dirigido. A dificuldade da cristandade judaica com os convertidos gentios prospectivos nos Atos dos Apóstolos e a disputa de Paulo com Pedro em Antioquia demonstram que, na primeira geração cristã, ninguém estava ciente de que Jesus tivesse declarado todo alimento puro!

Tão espúria quanto as duas precedentes, a terceira prova da afirmação de Jesus da sua superioridade sobre a Lei reside em seus ditos reunidos no Sermão da Montanha, conhecidos como "antíteses" (Mt 5:21-48). Nestes, um antigo preceito do Velho Testamento, por exemplo, "Não matarás", é introduzido com as palavras, "Ouviste que foi dito aos antigos", e seguido pela proclamação de Jesus, "Eu, porém, vos digo" outra coisa, tal como "todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá que responder no tribunal" (Mt 5:21-2).

 Entretanto, quando objetivamente analisadas, as suas declarações reforçam e esclarecem, em vez de contradizerem a Torá. Ao proibir a raiva, Jesus não permite o assassinato, mas garante que a sua raiz seja arrancada.

Tomar as antíteses por uma "ruptura da letra da Lei", como fez Ernst Käsemann, um estudioso alemão do Novo Testamento, revela a extraordinária cegueira de que teólogos de um certo tipo são presa.



POST-SCRIPTUM:
















A FILOSOFIA DE PLATÃO



Podemos reconhecer uma relação entre o culto grego da memória e a metafísica platônica na hipótese da reminiscência. Platão coloca o problema de como o homem, enquanto ser concreto que existe no tempo e no espaço, pode conhecer as essências incorpóreas e atemporais.

Tal possibilidade só é exequível se supomos que ele possui algo também incorpóreo e indestrutível, de natureza semelhante às 'Ideias', ou seja, uma alma, também pura forma imortal. Essa alma já teria contemplado as essências antes de se prender ao corpo ao qual está provisoriamente vinculada, no qual ela esquece aquele conhecimento anterior.

Entretanto, os sentidos apreendem objetos que são cópias imperfeitas daquelas essências que a alma contemplara, o que permite que ela vá se lembrando das 'Ideias'. Desta forma, o conhecimento seria, na verdade, reconhecimento, reminiscência, retorno, através de etapas sucessivas.




Segundo Platão, o mais elevado de todos os conhecimentos seria o conhecimento do Bem, que se atinge ao fim de uma escalada que leva às 'Ideias' ou essências. Este seria, como o sol, a fonte de toda a luz, fazendo com que os objetos possam ser conhecidos e que nós possamos conhecê-los. 

Assim, tal conhecimento seria superior à Arte, na medida em que esta permanece no nível das sensações, sendo desta forma, impossível a construção de um conhecimento seguro e estável à partir da mesma, uma vez que as sensações fornecem evidências apenas momentâneas e individuais.

Daí, temos que a Arte não passaria de mero simulacro, ou seja, cópia da cópia, uma vez que os objetos da Natureza só existem por participação em, ou imitações das 'Idéias' (o Demiurgo a tudo molda, baseado em modelos perfeitos e impecáveis). Por outro lado, a Arte lida com o Belo e está subordinada ao Bem e ao Verdadeiro. A beleza fica no domínio do sensível e este mantém-se na aparência, ao passo que o Verdadeiro e o Justo residem no interior das coisas.




A alegoria da caverna ilustra uma experiência interior que muitos se recusam a empreender. Mas não se deve reduzir esta experiência à mera libertação individual. O prisioneiro só se evade para voltar, pois é a volta que dá sentido à fuga. Saber em que mundo se vive permite que se viva nele de outra maneira, como homem livre e não mais como prisioneiro manipulado pelos exibidores de marionetes.

Mas é ainda mais difícil anunciar a boa nova da libertação. Quando o filósofo volta a descer até os prisioneiros corre o risco de não ser ouvido e, se insiste, de até ser morto, como o foi Sócrates.
Esta atitude de fidelidade ao conhecimento é o que diferencia a vida justa da vida injusta.


POST-SCRIPTUM: