“Estão iludidos os homens quanto ao
conhecimento das coisas visíveis, mais ou menos como Homero, que foi mais sábio
que todos os helenos. Pois o enganaram meninos que matando piolhos lhe
disseram: o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos
é o que trazemos conosco.” - fragmento 56
A filosofia, da forma como se
manifesta entre os pré-socráticos, por seu conteúdo inaugural, tem em comum com
a religião grega os mesmos pressupostos, ou seja, a imaginação poética e a
intuição da analogias, uma vez que a instauração do questionamento filosófico não
se deu pelo rompimento radical com sua herança mitológica, já que o homem grego não compreendia seus
deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural, sem embargo de reconhecermos
em seu discurso algo totalmente diferente do discurso dos poetas.
Não obstante, cada um, a sua maneira,
é obscuro, sinuoso, truncado e, portanto, de difícil compreensão. Por outro
lado, apesar da maior dificuldade que apresentam para seu entendimento, têm a
vantagem de abranger inúmeros significados simultaneamente.
Sendo assim, nada nos impede de
imaginar que uma das chaves para a compreensão do enigma proposto por Heráclito
seja o fato de que, segundo as lendas, Homero era cego. Portanto, a
continuarmos nesta linha de raciocínio, mesmo tendo sido considerado o mais
sábio entre os gregos, este não poderia supor que se tratava de algo tão vulgar
quanto a cata de piolhos a resposta à questão colocada pelos tais meninos com o
evidente propósito de pilheriar.
Entretanto, não devemos entender a
intenção do filósofo, ao enunciar a citada proposição, de forma tão simplória,
sob a pena de, também nós, cairmos na armadilha da ilusão. Até mesmo porque esta não chega nem a ser uma
compreensão óbvia, sendo, antes, uma transcrição literal: aquilo que os meninos
largam são exatamente aqueles piolhos que eles veem, pegam e matam. Aqueles que
eles não veem não podem ser pegos e, portanto, continuam com eles, escondidos.
É evidente que este enigma não aponta
apenas para a mera atividade de catar piolhos, pois, como nos diz o próprio
Heráclito “não devemos julgar apressadamente as grandes coisas” (fragmento 47).
Outras vias de entendimento apontam para uma descrição radical da forma como
esse filósofo compreende o movimento de realização das potencialidades vitais,
sendo, portanto, bem mais sutis e instigantes.
Num primeiro momento podemos tentar
compreender aquilo que Heráclito nos propõe “mais ou menos” como uma metáfora
da ilusão dos homens “quanto ao conhecimento das coisas visíveis”. Outrossim,
como deixamos claro acima, devemos estar atentos ao fato de que essa
compreensão pode dar-se ao nível de variados e diferentes contextos.
O homem está sempre a procura de “pegar”
tudo aquilo que vê, ou seja, adquirir um conhecimento imediatista e superficial
a respeito do mundo material (as “coisas visíveis”). Esta atitude equivocada
leva-o a enganar-se da mesma maneira que o mais sábio de todos os helenos.
Agindo assim, afasta-se daquilo que é realmente importante e que não é tão
visível, estando, portanto, escondido como os piolhos que não são vistos nem
pegos pelos meninos e que, apesar de tudo, “trazemos conosco”, nossos valores e
crenças.
Elaborando um pouco mais, podemos
dizer que, ao dedicar-se ao assim chamado “mundo sensível”; ao assumir uma
postura eminentemente empírica frente ao conhecimento; ao sobrevalorizar um modus operandi essencialmente analítico,
o homem está simplesmente a “catar piolhos”, pegando o que vê para, em seguida,
“matar” e largar como faria a um pequeno e insignificante inseto, em
decorrência mesmo dessa atitude indiferente e desapaixonada associada à
atividade de detectar coisas menores.
Desta feita, ao persistir neste
caminho, aliena-se, na mesma proporção e com a mesma intensidade, do que seria
a sua realidade interior, o “mundo inteligível”. Ou seja, enquanto permanece
cego e iludido, apartado de sua autenticidade, despojado de sua espontaneidade e
descrente de sua intuição, sendo apenas mais um em meio aos entes, não se
apercebe daquela unidade de que compartilha em sua manifestação mais radical
que, em síntese, é o Ser.
POST-SCRIPTUM:
"Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Lógos" (fragmento 45)
POST-SCRIPTUM:
"Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Lógos" (fragmento 45)
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