[Trecho extraído e editado do capítulo 6 ("O Jesus dos Evangelhos Sinópticos: curandeiro e mestre carismático e entusiasta escatológico") do livro AS VÁRIAS FACES DE JESUS de autoria de GEZA VERMES, publicado pela Editora RECORD]
As leis alimentares (kosher versus não kosher)
constituem uma segunda área do suposto conflito de Jesus com a Torá de Moisés, mas a afirmativa de que ele aboliu a distinção entre puro e impuro está baseada numa incompreensão crassa de um dito sutil: "Não há nada no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro... Não entendei que tudo o que vem de fora, entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no coração, mas no estômago, e sai para a fossa?" (Mc 7:15, 18-19; Mt 15:11, 17-18).
O significado patente dessas palavras é que a corrupção não vem pelo alimento enquanto tal, mas quando se negligencia profundamente uma proibição divina, uma interpretação ética costumeira de um preceito legal. Essa moralização da Lei se enraíza, sem contar os profetas bíblicos, no autor da Carta de Aristéia na primeira metade do século II a.C., segundo a qual Deus não é honrado por oferendas e sacrifícios, mas por pureza d'alma e convicções sagradas.
A mesma ideia é essencial ao ensinamento partilhado por Filo de Alexandria e por Jesus, que identifica os Dez Mandamentos como o epítome da Lei (Leis Especiais I,I; Mc 10:17-19; Mt 19:16-19; Lc 18:18-20), ou a assim chamada Regra de Ouro - "Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles" - que sob formas variantes vai de Tobias (4:15) e Filo (Hupothética 7:6) até Ilel, um destacado mestre judeu à virada da era (bShabbat 31a), e o próprio Jesus (Mt 7:12; Lc 6;31).
Para voltarmos às leis dietéticas, o comentário do editor do Evangelho de Marcos 7:19 - "Assim, ele declarava puros todos os alimentos" - é um comentário secundário que nada tinha a ver com Jesus, e só era significativo e benéfico para a igreja gentílica-cristã à qual o Evangelho era em última análise dirigido. A dificuldade da cristandade judaica com os convertidos gentios prospectivos nos Atos dos Apóstolos e a disputa de Paulo com Pedro em Antioquia demonstram que, na primeira geração cristã, ninguém estava ciente de que Jesus tivesse declarado todo alimento puro!
Tão espúria quanto as duas precedentes, a terceira prova da afirmação de Jesus da sua superioridade sobre a Lei reside em seus ditos reunidos no Sermão da Montanha, conhecidos como "antíteses" (Mt 5:21-48). Nestes, um antigo preceito do Velho Testamento, por exemplo, "Não matarás", é introduzido com as palavras, "Ouviste que foi dito aos antigos", e seguido pela proclamação de Jesus, "Eu, porém, vos digo" outra coisa, tal como "todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá que responder no tribunal" (Mt 5:21-2).
Entretanto, quando objetivamente analisadas, as suas declarações reforçam e esclarecem, em vez de contradizerem a Torá. Ao proibir a raiva, Jesus não permite o assassinato, mas garante que a sua raiz seja arrancada.
Tomar as antíteses por uma "ruptura da letra da Lei", como fez Ernst Käsemann, um estudioso alemão do Novo Testamento, revela a extraordinária cegueira de que teólogos de um certo tipo são presa.
POST-SCRIPTUM:
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