[O texto original de autoria de Daniel Haddad encontra-se em: http://br.geocities.com/ateismo]
Uma boa reflexão é tentar estabelecer quais seriam os desígnios de "Deus", dentro do plano da Criação, cotejados com a possibilidade aleatória real da destruição desta mesma criação, por um fenômeno natural, como o choque de um asteróide com a Terra. Esta questão está no mesmo nível do paradoxo da existência do mal em um mundo criado por um ser "Omniciente", todo bondade e amor. Por que existe o mal na Criação de um ser "todo-bondade"? Por que em um mundo, em que em última palavra Deus é responsável, existem desastres naturais que podem matar milhões? Por que existem doenças que causam sofrimentos e mutilações em crianças e inocentes? Em outras palavras, por que existe o mal e o sofrimento de qualquer espécie? Este dilema é conhecido como o "problema do mal".
Resumidamente, podemos caracterizar o problema do mal da seguinte maneira: Se Deus não sabe que existe o mal Ele não é "Omniciente". Se Deus sabe que existe o mal, mas não pode evitá-lo Ele não é "Omnipotente". Se Deus sabe que existe o mal, pode evitá-lo, mas decide não fazê-lo Ele não é "Omnibondoso".
Se, como os cristãos afirmam, Deus é todo-sabedoria e é todo-poder, temos que concluir que Deus não é todo-bondade. A existência do mal no Universo exclui essa possibilidade. Tem havido várias tentativas dos religiosos de escapar do problema do mal. Uma abordagem teológica geral do problema do mal, consiste na afirmativa de que o mal é de alguma maneira irreal ou, puramente, de caráter negativo. Este argumento é tão inadmissível que poucos cristãos se oferecem para defendê-lo. Um dos primeiros problemas com esse argumento é: "Se o mal não é realmente nada, então por que toda agitação sobre o pecado: nada?". Qualquer tentativa de absolver Deus da responsabilidade sobre o mal, afirmando que em última análise não existe tal coisa denominada mal, é uma piada sem graça.
Outro esforço comum para reconciliar Deus com o mal, argumenta que o mal é a conseqüência do livre arbítrio humano. Apesar desta abordagem possuir uma coerência inicial, ela falha de imediato na solução do problema do mal. Somos solicitados a acreditar que Deus criou o homem com o poder de escolha na esperança que este, voluntariamente, seguisse o caminho do bem e se o homem frustasse o desejo de Deus, atrairia o mal sobre sua própria cabeça. Porém, para começar, falar-se de frustar ou agir, contrariamente, aos desígnios de um ser divino "omnipotente" não faz sentido. Não existem barreiras para a "omnipotência" divina, nenhum obstáculo poderia obstar seus desejos, desta forma temos que assumir que o presente estado do mundo está precisamente como a vontade de Deus quis. Se Deus desejasse que as coisas estivessem de maneira diferente do que elas estão, nada poderia evitar que elas fossem de maneira diferente, não obstante o livre arbítrio do homem.
O livre arbítrio é incompatível com o conhecimento "a priori" que o ser "Omnipotente" detém, desta forma o apelo ao livre arbítrio também falha neste aspecto. De qualquer maneira, Deus ao criar o homem possuía total conhecimento do sofrimento generalizado que este estaria sujeito e dada à sua faculdade de evitar esta situação, devemos presumir que Deus desejou e quis que esta atrocidade imoral ocorresse.
É injusto colocar a responsabilidade de ações imorais, generalizadamente, no livre arbítrio humano. Homens individuais cometem atrocidades, não a abstração "homem". Alguns homens cometem injustiças, outros não. Alguns homens assassinam, roubam ou enganam mas outros não o fazem. Como então, podemos avaliar um Deus que permite a injustiça disseminada quando, facilmente, estaria entre seus poderes evitá-la. Os cristãos acreditam em um Deus que demonstra pouco ou nenhum interesse na proteção dos inocentes, e devemos nos perguntar se tal entidade pode ser chamada "bom".
Mesmo que ultrapassássemos as presentes dificuldades, o apelo ao livre arbítrio é ainda derrubado porque ele encampa somente o chamado mal moral (i.e. ações do homem). Ainda restariam os problemas incomensuráveis dos males físicos, tais como desastres naturais, sobre os quais o homem não tem controle.
Por que existem inundações e terremotos que podem matar bilhões e mesmo aniquilar com a espécie humana? A responsabilidade por estas ocorrências obviamente não poderá recair sobre os ombros do homem...
POST-SCRIPTUM:
Como diz o ditado (e muitos deles possuem uma sabedoria intuitiva muito aguçada), "o pior cego é aquele que não quer ver".
Do ponto de vista antropológico, tal questão, suscitada pela escatologia judaico-cristã, só se resolve na dimensão do imaginário (chamem-no de inconsciente coletivo, imaginal, 'illud tempus', etc.), onde se processa a fenomenologia do mitema, através da aceitação do ganho interpretativo fornecido pelo entendimento da simetria paradialética colocada pela reflexão inclusiva (que admite uma lógica paradoxal), muito bem expressa na fórmula hermética: "O diabo é deus inverso".
Ou, em outras palavras (como já sugeria Mme. Blavatsky), Deus e Satã, enquanto componentes de uma mesma determinada bacia semântica, são um e o mesmo, e sua aparente oposição é um 'efeito de imagem' produzido a partir de perspectivas topológicas diferentes e não necessariamente excludentes, mas, muito pelo contrário, complementares.
Supera-se, portanto, a moralidade eclesiástica entendendo-a como uma particularidade histórica e contingente plasmada a partir de um 'sentimento de moralidade' (algo como um 'instinto utilitarista' psicossocial que visaria, em última análise, a preservação da espécie) maior e mais abrangente, porque arquetípico.
Se entendermos 'Deus' como o fundamento primeiro e último de todo e qualquer evento, sua representação mais coerente em qualquer instância é o Devir, e este se põe, desde sempre, como Multiplicidade.
No horizonte mitológico do imaginário, que dá sentido ao arquétipo da 'divindade', a multiplicidade do Devir se dá (como, aliás, em qualquer horizonte interpretativo) num regime de "excesso" não totalizável que engloba as anomalias virtuais do 'um' (afirmação da negação) e do 'não-um' (negação da afirmação), além do próprio movimento circular que se estabelece entre ambos.
Esta "santíssima trindade" é somente passível de apreensão, para além de sua aparente contradição, a partir da reflexão que admita uma lógica mais ampla, paradoxal, da qual a lógica formal, com seus silogismos e identidades, é apenas um caso especial, numa relação análoga aquela entre a geometria euclidiana e a possibilidade de múltiplos tipos de geometria.
Deus, portanto, 'é um' e 'é muitos', simultaneamente, ainda que 'não-seja' absolutamente, posto que, na gramática do imaginário, 'ele' é, antes de tudo Verbo (ação de movimento recíproco entre simetrias) e, só depois, Sujeito e Predicado, ainda que apenas virtualmente.
Sintetizando de forma mais clara: o conceito originário de 'Deus' (ou de 'realidade', ou de 'universo') não tem nenhuma relação com nossas concepções humanas de Bem e Mal, justiça e injustiça; estes são meros reflexos imateriais projetados por nossas necessidades até certo ponto instintivas de segurança, conforto, atenção e afeto.
Somos coagidos a agir como entes morais até por uma questão de sobrevivência cultural (moral esta que pode variar de acordo com as circunstâncias temporais, espaciais e existenciais, inclusive), o que não obriga necessariamente o resto do mundo ou 'Deus' a sê-lo, de forma alguma.
Na verdade, imputamos tais características a nossas divindades e depois invertemos os termos da equação dizendo que fomos "criados a sua imagem e semelhança".
Parafraseando a própria Bíblia, "cresçamos e nos multipliquemos", mas também tornemo-nos mais maduros, honestos e corajosos.