quarta-feira, 15 de abril de 2015

O SER E O EVENTO (1)





[Parte 1 da Introdução do livro "O SER E O EVENTO" de autoria de ALAIN BADIOU]


Admitamos que hoje, na escala mundial, seja possível começar a análise do estado da filosofia pela suposição dos três enunciados que se seguem:

1. Heidegger é o último filósofo universalmente reconhecível.

2. A figura da racionalidade científica é conservada como paradigma, de maneira dominante, pelos dispositivos de pensamento, sobretudo norte-americanos, que se seguiram às mutações matemáticas, às da lógica e aos trabalhos do círculo de Viena.

3. Está em desenvolvimento uma doutrina pós-cartesiana do sujeito, cuja origem pode ser atribuída a práticas não filosóficas (a política, ou a relação instituída com as "doenças mentais"), e cujo regime de interpretação, marcado pelos nomes de Marx (e Lenin), de Freud (e Lacan), está enredado em operações, clínicas ou militantes, que excedem o discurso transmissível.

Que há de comum nestes três enunciados? Não há dúvida de que designam, cada um a sua maneira, o fecho de uma época inteira do pensamento e de seus desafios. Heidegger, no elemento da desconstrução da metafísica, pensa a época como regida por um esquecimento inaugural, e propõe um retorno grego. A corrente "analítica" anglo-saxã desqualifica a maior parte das frases da filosofia clássica como desprovidas de sentido, ou limitadas ao exercício livre de um jogo de linguagem. Marx anunciava o fim da filosofia, e sua realização prática. Lacan fala de "antifilosofia", e prescreve ao imaginário a totalização especulativa.

Por outro lado, o que há de incongruente nestes enunciados salta aos olhos. A posição paradigmática da ciência, tal como, até em sua negação anarquizante, ela organiza o pensamento anglo-saxão, é assinalada por Heidegger como um efeito último, e niilista, da disposição metafísica, ao passo que Freud e Marx conservam seus ideais, e que o próprio Lacan reconstituía nela, pela lógica e a topologia, os esteios de eventuais matemas. A ideia de uma emancipação, ou de uma salvação, é proposta por Marx ou Lenin no modo de uma revolução social, mas é considerada por Freud ou Lacan com um pessimismo cético, considerada por Heidegger na antecipação retroativa do "retorno dos deuses", enquanto, grosso modo, os americanos se contentam com o consenso em torno dos procedimentos da democracia representativa.

Há, portanto, acordo geral quanto a convicção de que nenhuma sistemática especulativa é concebível, e de que está encerrada a época em que a proposição de uma doutrina do nó ser/não-ser/pensamento (se admitirmos que é desse nó que, desde Parmênides, se origina o que chamamos "filosofia") podia ser feita na forma de um discurso acabado. O tempo do pensamento está aberto para um regime de apreensão diferente.

Há desacordo quanto à questão de saber se essa abertura, cuja essência é encerrar a idade metafísica, se indica como revolução, como retorno, ou como crítica.

Minha própria intervenção nessa conjuntura consiste em traçar nela uma diagonal, pois o trajeto de pensamento que tento passa por três pontos suturados, cada um, num dos três lugares que os enunciados acima designam. 

- Com Hidegger, vamos sustentar que é do ângulo da questão ontológica que se sustenta a re-qualificação da filosofia como tal.

- Com a filosofia analítica, afirmaremos que a revolução matemático-lógica de Frege-Cantor fixa orientações novas para o pensamento.

- Admitiremos, por fim, que nenhum aparato conceitual é pertinente se ele não for homogêneo às orientações teórico-práticas da doutrina moderna do sujeito, ela própria interior a processos práticos (clínicos ou políticos).

Esse trajeto remete a periodizações imbricadas,
cuja unificação, a meu ver arbitrária, conduziria à escolha unilateral de uma das três orientações contra as demais. Vivemos uma época complexa, se não confusa, visto que as rupturas e as continuidades de que ela se entretece não se deixam subsumir sob um vocabulário único. Não há hoje "uma" revolução (ou "um" retorno, ou "uma" crítica). Eu tenderia a resumir assim o múltiplo temporal descompassado que organiza nossa situação:

1. Somos contemporâneos de uma terceira época da ciência, após a grega e a galileana. A cesura nomeável que abre esta terceira época não é (como no caso da grega) uma invenção - a das matemáticas demonstrativas -, nem (como a galileana) um corte - aquele que matematiza o discurso físico. É uma reorganização, a partir da qual se revelam a natureza da base matemática da racionalidade e o caráter da decisão de pensamento que a estabelece.

2. Somos igualmente contemporâneos de uma segunda época da doutrina do Sujeito, que não é mais o sujeito fundador, centrado e reflexivo, cujo tema se estende de Descartes a Hegel, e ainda permanece legível até Marx e Freud (e até Husserl e Sartre). O sujeito contemporâneo é vazio, clivado, a-substancial, irreflexivo. Aliás, ele pode apenas ser suposto no tocante a processos particulares cujas condições são rigorosas.

3. Somos, por fim, contemporâneos de um começo no que diz respeito à doutrina da verdade, depois que sua relação de consecutividade orgânica com o saber se desfez. Percebemos retroativamente que, até agora, reinou absoluta o que chamarei aqui a veridicidade; e, por estranho que isso possa parecer, convém dizer que a verdade é uma palavra nova na Europa (e alhures). De resto, esse tema da verdade atravessa Heidegger (que é o primeiro a subtraí-lo ao saber), os matemáticos (que no fim do século XIX romperam tanto com o objeto quanto com a adequação) e as teorias modernas do sujeito (que excentram a verdade de sua pronunciação subjetiva).

A tese inicial de minha empreitada, aquela a partir da qual dispomos o imbricamento das periodizações, extraindo o sentido de cada uma, é a seguinte: a ciência do ser-enquanto-ser existe desde os gregos, pois esse é o estatuto e o sentido das matemáticas. Somente hoje, porém, temos os meios de saber tal coisa. Dessa tese decorre que a filosofia não tem por centro a ontologia - a qual existe como disciplina exata e separada -, mas circula entre essa ontologia, as teorias modernas do sujeito e sua própria história. O complexo contemporâneo das condições da filosofia abarca, por certo, tudo a que se referem meus três enunciados primeiros: a história do pensamento "ocidental", as matemáticas pós-cantorianas, a psicanálise, a arte contemporânea e a política. A filosofia nem coincide com nenhuma dessas condições, nem elabora sua totalidade. Ela deve apenas propor um quadro conceitual onde possa se refletir a compossibilidade contemporânea desses elementos. Só o pode fazer - pois é isso que a despoja de toda ambição fundadora, em que se perderia - designando entre suas próprias condições, e como situação discursiva singular, a própria ontologia, sob a forma das matemáticas puras. É isso, propriamente, o que a liberta, e a consagra finalmente ao zelo das verdades.