segunda-feira, 21 de abril de 2014

ZARATUSTRA


[Editado do capítulo 1 do livro "O Zaratustra de Nietzsche" de autoria de Pierre Héber-Suffrin e publicado por Jorge Zahar Editor]


Por que iria um pensador alemão do século XIX falar-nos pela boca de um profeta iraniano do século VII antes de nossa era, e pôr-nos a sua escuta?

Nietzsche diz ter escolhido Zaratustra precisamente para que seu personagem diga "exatamente o contrário" do que disse o Zaratustra histórico. Assim, Nietzsche escolheu Zaratustra para opô-lo a Zaratustra.

E, de fato, ele os opõe radicalmente: de um lado, o papel do Zaratustra histórico consistiu, com efeito, na invenção de um dualismo de inspiração moral, dualismo que explicava todas as coisas pela ação de dois princípios em luta, dualismo moral para o qual um desses princípios é o Bem e o outro o Mal.

Essa invenção, Zaratustra a fez - segundo Nietzsche - extrapolando nossa experiência moral humana do bem e do mal, dando-lhes uma dimensão teológica (há um Deus Bem e um Deus Mal) e cosmológica (no universo, tudo se explica pela ação de um ou outro desses dois princípios, e por sua rivalidade).

Ora, por outro lado, precisamente, é esse dualismo e esse moralismo que Zaratustra, o personagem literário, vai rejeitar pois precisamente é a recusa desse dualismo e desse moralismo que constitui um ponto essencial do pensamento de Nietzsche.

Ele observa que Zaratustra foi o primeiro a pregar um dualismo e um moralismo que, recebidos depois, como herança, da Bíblia e da Grécia, impregnarão toda a nossa cultura.

Mas, por outro lado, o que interessa a Nietzsche é principalmente o fato de que Zaratustra foi o primeiro a VER esse dualismo moralista, o primeiro a descobrir claramente o fundamento moral de sua metafísica, a operar deliberadamente essa transposição do ético para o cósmico, a discernir a "genealogia" moral da sua concepção do mundo.

Ora, em linguagem nietzschiana, esse discernimento é sinceridade. Ser lúcido é, pois, ser sincero em relação a si mesmo, ter a coragem de suas opiniões, a coragem da verdade; é ter, antes da coragem de dizê-las, a coragem de pensá-las, de VÊ-LAS.

É por isso que Nietzsche o escolheu; em razão dessa sinceridade-lucidez que caracteriza o próprio Nietzsche, dessa sinceridade-lucidez que permitiu ao Zaratustra real ver o fundamento moral de sua metafísica e que, agora, o obriga logicamente a tornar-se o exato contrário do que ele era: o Zaratustra nietzschiano.   



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