Faz-se urgentemente necessário parar de ler a Bíblia como se fosse uma descrição textual de fatos consumados. Tal interpretação é um grande equívoco, ou deveria ser considerada como tal, pelo menos entre aquelas pessoas que, como eu, não a vêem como uma "revelação divina", a não ser em um sentido metafórico e alegórico.
Muitas de suas passagens, desde que abstraídas do contexto referente à questão das intervenções divinas, podem realmente ser consideradas como relatos mais ou menos fidedignos de acontecimentos históricos, conforme demonstram inúmeros exemplos arqueológicos.
Porém, em sua maior parte, ela deve ser interpretada como contendo alegorias e metáforas para a transmissão e preservação de certas idéias de cunho filosófico, algumas comprovadamente herdadas de fontes bem mais antigas e adaptadas por seus redatores, incluindo-se aí preceitos éticos e conceitos metafísicos (e mesmo de noções de higiene e profilaxia que pareceriam rudimentares aos nossos olhos modernos), que a população a que era direcionada, na época, por diversos motivos teria dificuldades em compreender ou praticar, a não ser que envoltas no véu do mistério, bem como um dos principais veículos da manifestação artística, pela via literária, de um povo proibido por sua própria crença de fazer esculturas de si mesmo e de sua divindade, além, é claro, de ser uma excelente ferramenta de controle social e político, no âmbito coletivo (como também de conforto psicológico, no âmbito individual), em momentos de crise, uma circunstância que não era incomum no dia-a-dia dos hebreus.
É neste contexto, portanto, que volto a insistir: A Bíblia é um livro que precisa ser lido com seriedade, PRINCIPALMENTE no se refere ao seu aspecto mitológico.
Pois eu entendo o mito não como uma "mentira", mas como um símbolo manifesto do inconsciente coletivo, portanto dotado de uma verdade psicológica relevante e autêntica.
Assim como entendo o valor do sentimento religioso como uma realidade psíquica sujeita a uma metodologia de estudo própria e fundamentalmente filosófica, cujo estatuto estaria para a ciência na mesma proporção que a arte, por exemplo.
E, embora os três (o mistério, a ciência e a arte) estejam em perpétuo conflito ideológico, a filosofia não se deixa prender por nenhum de seus parâmetros conceituais, transitando entre eles e servindo como "fio de Ariadne" que põe em contato suas respectivas verdades, aparentemente contraditórias.
O exemplo mais simples é o de que todas as religiões ditas primitivas procuravam explicar certos fenômenos atmosféricos (a chuva, o relâmpago, etc.) através de 'racionalizações' mágicas (e é claro que não se resumiam só a isso, certamente).
Além do mais, no início do pensamento filosófico na Grécia, entre os Pré-socráticos (mais ou menos no século 6 a.C.), o que veio a ser considerado como 'racional' estava ainda vinculado a hipóteses e explicações um tanto quanto 'místicas' na aparência, apesar da maioria destes filósofos poderem já ser considerados como ateus, pelo menos para os padrões da religiosidade oficial grega da época.
Resumindo: a Bíblia e, por extensão, qualquer texto de inspiração religiosa, entre tantos outros produzidos pelas mais diversas culturas na Antiguidade (como, por exemplo, o Alcorão, o Tao Te Ching, os Upanishads, o Bhagavad Gita, etc.), enquanto produtos da cultura humana e material de pesquisa sociológico e antropológico, estão longe de ser inúteis.
Entretanto, há que separar o Antigo do Novo Testamento, com vistas a uma melhor compreensão de ambos. No meu entender, se pusermos de lado certas idiossincrasias inevitáveis, é possível argumentar que, nas produções literárias que caracterizam tanto um quanto o outro, estão presentes motivações políticas e religiosas bastante similares, pelo menos a princípio, já que a raiz de muito do que prega o cristianismo e suas derivações seculares, como por exemplo no aspecto da igualdade perante a lei ou da atitude fraternal ante a necessidade dos menos favorecidos, já estar presente no judaísmo, sendo antes uma questão de envolvimento pessoal maior ou menor, decorrente muitas vezes de sutis diferenças de interpretação dadas à lei mosaica pelas diversas facções políticas e religiosas existentes à época da dominação romana na Palestina, quando teria surgido Jesus, que muitos supõe ter sido integrante da seita conhecida como 'essênios', cujos preceitos seriam semelhantes aos que ele teria divulgado.
Por outro lado, não há como escapar do fato de que os conteúdos simbólicos presentes nos dois Testamentos produziram resultados diferentes, e até certo ponto inusitados e surpreendentes, ao longo da história, que divergem em maior ou menor grau de sua proposta inicial, quando analisadas no contexto de sua inserção e adaptação a outras culturas que não a especificamente judaica.
Nesta perspectiva pode-se dizer que o Antigo Testamento cumpriu seu papel com mais eficiência e durante um tempo maior (apesar de toda sua ambivalência e contradição interna), sendo mais fiel ao que se propunha, ou seja, criar um forte vínculo cultural e étnico que servisse como estímulo psico-social à perseverança diante de antagonismos de todo tipo, enquanto circunscrito aos judeus, reforçado pelo Talmude e por tradições místicas ligadas à Cabala durante a Diáspora, pelo menos até o advento do Holocausto e da criação do estado de Israel.
Além do mais, enquanto fundamento do cristianismo e um dos pilares da civilização ocidental (juntamente com o legado da cultura greco-romana), o Antigo Testamento teve preservado muito de seu simbolismo exterior pelo ‘status quo’ dominante ao longo da história, enquanto que seu simbolismo esotérico foi perpetuado por geração após geração de místicos (inclusive cristãos e muçulmanos) e cultivado zelosamente por instituições semi-clandestinas e fraternidades pseudo-secretas, ao lado de outras tradições arcaicas das mais variadas origens.
Já no caso do Novo Testamento, por mais que este possa ser redimido por uma interpretação que valorize os elementos revolucionários de generosidade e tolerância universais contidos em sua mensagem - o que não é irrelevante, muito pelo contrário, mas, em minha modesta opinião, de aplicação quase impossível, na prática -, não resta dúvida de que o mesmo foi e tem sido, pelo menos desde a promulgação do Édito de Constantino em 321, vítima da mais abjeta deturpação e manipulação possíveis, até o ponto de quase total descaracterização de sua suposta intenção original, cujo cerne seria, penso eu, promover a convivência pacífica e a boa-vontade entre os homens, algo que pouquíssimas vezes (na realidade quase nunca), o cristianismo institucional, seja em sua vertente católica ou protestante, praticou de forma franca e sem subterfúgios.
Se bem que para sermos totalmente justos há que reconhecermos também que nenhuma outra religião institucional derivada da Bíblia, seja a judaica ou a islamica, praticou seus ensinamentos éticos de forma coerente, em todos os tempos e em todos os lugares onde prosperaram, talvez, suponho, em virtude da própria incoerência, patente ou aparente, inerente tanto à seus textos quanto à 'relação conflituosa' entre a Divindade Única e seu séquito.
Voltando ao Novo Testamento, talvez em virtude mesmo daquela dificuldade de concretização total e absoluta de sua doutrina, intrinsecamente exigida pela mesma a qualquer custo e, mais ainda, em espírito de sincera devoção, entusiasmo juvenil e arrebatamento espiritual, impermeável, portanto, a qualquer tipo de hipocrisia, interesse egoísta ou veleidade material, ou seja, tudo aquilo que nos torna demasiadamente humanos, talvez, repito, em virtude de tudo isso é que a “boa nova” presente nos Evangelhos seja um ideal inatingível, uma promessa sem esperança de realização, pelo menos enquanto o homem não encontrar os meios necessários para transcender sua própria natureza animal, se é que tal coisa é desejável ou mesmo possível, algo que é, no mínimo, discutível sob vários aspectos.
Que fique claro que não duvido absolutamente da sinceridade de algum crente isolado, mas nunca em minha vida encontrei um que não tivesse deslizes, brechas ou dúvidas em sua fé, por mínimas que fossem. Honestamente, não me arriscaria a 'por a mão no fogo' por nenhum deles...
Aliás, pode-se afirmar categoricamente que exista algo como uma 'natureza humana' imutável?
Ou o ser humano é capaz de construir-se e desconstruir-se a seu bel-prazer, influenciado por suas experiências, sejam elas materiais ou espirituais?
Será que o ideal professado por Jesus não tinha mais a ver com a humildade em aceitar a própria imperfeição de cada um e, ainda assim, procurar fazer sempre o melhor possível do que com a arrogância em propalar uma suposta superioridade, conforme fez a igreja romana e, posteriormente, as confissões protestantes, durante vários séculos?
E os judeus, será que realmente seguem as leis mosaicas ou, em sua maioria, ainda idolatram o 'bezerro de ouro'?
E quanto a certos fundamentalistas muçulmanos que identificam assassinato com zelo religioso?
É possível justificar com total honestidade intelectual tais comportamentos através de textos considerados sagrados por seus seguidores na atualidade, sejam eles a Bíblia, o Alcorão ou qualquer outro?
E será que arrogar-se como crente, praticante ou não, de uma determinada fé religiosa, ou, analogamente, como ateu, é garantia de atitudes e comportamentos éticos perante a vida e o mundo?
Ou será que o ser humano é naturalmente hipócrita, egoísta e imbecil?
Questões e mais questões...