terça-feira, 29 de abril de 2014

SAUDADES DO FUTURO (1)


[Editado de um texto de Arnaldo Jabor publicado no Segundo Caderno do jornal O GLOBO]


Sempre falamos em "cultura brasileira", mas não sabemos exatamente o que é isso, hoje em dia. Cultura é o que? Uma senhora grega, de camisola, segurando uma tocha? Cultura é uma índia, negra e portuguesa, de cocar e saiote? Cultura é um museu erudito e paralítico que rima com "sepultura"? Fazemos boquinha elegante para falar em "cultura" mas sempre sobra um gosto de alguma coisa em crise, que deve ser salva.

Na tradição de bacharéis colonizados de cartola e fraque, sempre amamos as "coisas do espírito", "a alma minha gentil" ou o "vai-se a primeira pomba despertada", as poesias com que nos embriagávamos nos botequins da República Velha, em meio à febre amarela e à varíola. 

A impotência política para superar nosso atraso endêmico nos levou a uma supervalorização da "cultura artística". Era nossa ilusão e consolo: "somos pobres, mas com uma cultura rica...". Senti isso em minha juventude, quando um companheiro me disse: "Não temos nada, mas somos o sal da terra". Fazíamos arte, filmes, música como se salvássemos o país. Agora a web é uma cachoeira de criações artísticas. Acabam os poucos artistas criando para muitos.

Antes, o subdesenvolvimento nos dava uma "superioridade" sobre os "falsos problemas europeus", como o absurdismo do teatro de Beckett ou Ionesco, o "existencialismo alienado do social" ou o sinistro comercialismo americano. A pobreza era nossa maior riqueza. Vivíamos na divisão simplista entre "centro e periferia", colonia e metrópole, vítimas santificadas do imperialismo cruel.

Nossos defeitos institucionais seculares ficavam ocultos, já que a culpa era "dos outros". Chegamos a fazer a glamourização da incompetência. Era a poética da precariedade contra a técnica dos países ricos e "decadentes". Achávamos a miséria uma nova estética - o mito de que o tosco, o povo simples e até o burro são ungidos por uma "verdade sagrada".

Essa ideia reacionária rola até hoje, haja visto o carisma triunfal do ex-presidente operário. Minha geração, no cinema e na esquerda, achávamos que teríamos um futuro cultural que nos salvaria; havia um geist artístico em marcha a uma harmonia libertadora. Éramos os "sujeitos" que moldariam a História. Éramos hegelianos e não sabíamos.

No entanto, as mutações culturais mais visíveis (que não enxergávamos) vieram por "irrupções" de causas materiais, de relações de produção industriais e comerciais: a cultura do café e o Modernismo; o crash da bolsa em 29 contribuindo para nossa "identidade" na revolução de 30; a indústria fonográfica americana e o rádio projetando a música popular dos anos de ouro; a industrialização juscelinista possibilitando a arquitetura, a bossa nova, o Cinema Novo; a Philips e outras gravadoras veiculando a música dos anos 1960; a TV ensinando o povo a falar e a ver o país. Não éramos marxistas e não sabíamos.


POST-SCRIPTUM:





 Continua...