[ALAIN BADIOU; O SER E O EVENTO; INTRODUÇÃO; JZE; EDITORA UFRJ]
Se a realização da tese "as matemáticas são a ontologia" é a base deste livro, não é de modo algum sua finalidade. Por mais radical que seja, essa tese não faz senão delimitar o espaço próprio possível da filosofia. Sem dúvida, ela mesma é uma tese metaontológica, ou filosófica, tornada necessária pela situação atual acumulada das matemáticas (após Cantor, Gödel e Cohen) e da filosofia (após Heidegger). Mas sua função é abrir para os temas específicos da filosofia moderna, e em particular - pois que do ser-enquanto-ser a matemática é guardiã - para o problema d'"o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser", a cujo respeito é precipitado, a bem dizer estéril, declarar desde já que se trata do não-ser. O domínio (que não é um domínio, é antes um inciso, ou um suplemento) d'o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser se organiza, para mim, em torno de dois conceitos, emparelhados e essencialmente novos, que são os de verdade e de sujeito.
Não há dúvida de que o vínculo entre a verdade e o sujeito pode parecer antigo, ou, em todo caso, selar o destino da primeira modernidade filosófica, cujo nome inaugural é Descartes. Afirmo, no entanto, que é de um ângulo inteiramente diverso que são aqui reativados esses termos, e que este livro funda uma doutrina efetivamente pós-cartesiana, e até pós-lacaniana, daquilo que, para o pensamento, ao mesmo tempo des-liga a conexão heideggeriana do ser e da verdade e institui o sujeito, não como suporte ou origem, mas como fragmento do processo de uma verdade.
Do mesmo modo, se uma categoria devesse ser designada como emblema de meu empreendimento, não seria nem o múltiplo puro de Cantor, nem o construtível de Gödel, nem o vazio, pelo qual o ser é nomeado, nem mesmo o evento, onde se origina a suplementação pelo o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser. Seria o genérico.
Essa própria palavra, "genérico", eu a tomo de um matemático, Paul Cohen. Com as descobertas de Cohen (1963), conclui-se o grande monumento de pensamento começado por Cantor e Frege no final do século XIX. Gostaria de dizer aqui que os conceitos de Cohen (genericidade e forçamento) constituem, a meu ver, um topos intelectual pelo menos tão fundamental quanto o foram, em seu tempo, os famosos teoremas de Gödel. Eles atuam muito além de sua validade técnica, que até o momento os confinou na arena acadêmica dos últimos especialistas da teoria dos conjuntos. De fato, eles regram em sua ordem própria o velho problema dos indiscerníveis, refutam Leibniz e abrem o pensamento para a captura subtrativa da verdade e do sujeito.
É, portanto, ao que chamarei de procedimentos genéricos (há quatro deles: o amor, a arte, a ciência e a política), que se prendem tanto a reunião ideal de uma verdade quanto a instancia finita de tal reunião, que é, a meus olhos, um sujeito. O pensamento do genérico supõe a completa travessia das categorias do ser (múltiplo, vazio, natural, infinito...) e do evento (ultra-um, indecidível, intervenção, fidelidade...). São tantos os conceitos que ele cristaliza que é difícil dar-lhe uma imagem. Direi, contudo, que ele se prende ao problema profundo do indiscernível, do inominável, do absolutamente qualquer. Um múltiplo genérico (e tal é sempre o ser de uma verdade) é subtraído ao saber, desqualificado, inapresentável. No entanto, ele se deixa pensar.
O que se passa na arte, na ciência, na verdeira e rara política, no amor (se é que ele existe), é a vinda à luz de um indiscernível do tempo, que não é, por isso, nem um múltiplo conhecido ou reconhecido, nem uma singularidade inefável, mas que detém em seu ser-múltiplo todos os traços comuns do coletivo considerado, e, nesse sentido, é verdade de seu ser. O mistério desses procedimentos foi, em geral, remetido seja às suas condições representáveis (o saber do social, do sexual, do técnico...), seja ao além transcendente de seu Um (a esperança revolucionária, a fusão amorosa, o ek-stase poético...). Na categoria do genérico, proponho um pensamento contemporâneo desses procedimentos, que mostra que eles são simultaneamente indeterminados e completos, porque, no furo de todas as enciclopédias disponíveis, eles certificam o ser-comum, o fundo múltiplo, do lugar de onde procedem.
Um sujeito é então um momento finito desse certificado. Um sujeito certifica localmente. Ele só se sustenta por um procedimento genérico, e não há, portanto, stricto sensu, senão sujeito artístico, amoroso, científico ou político.
A matemática é citada aqui para que se torne manifesta sua essência ontológica. Assim como as ontologias da Presença citam e comentam os grandes poemas de Hölderlin, de Trakl ou de Celan, e ninguém condena que o texto poético seja ao mesmo tempo exposto e incisado, também é preciso conceder-me, sem fazer a empresa pender para o lado da epistemologia (não mais que a de Heidegger para o lado da simples estética), o direito de citar e incisar o texto matemático. Pois o que é esperado dessa operação é menos um saber das matemáticas do que a determinação do ponto em que o dizer do ser advém, em excesso temporal sobre si mesmo, como uma verdade, sempre artística, científica, política ou amorosa.
É uma imposição da época que a possibilidade de citar as matemáticas seja exigível para que verdade e sujeito sejam pensáveis no seu ser. Que me seja permitido dizer que essas citações são, no fim das contas, mais universalmente acessíveis, e unívocas, do que as dos poetas.
As matemáticas têm um poder próprio de fascinar e de apavorar que a meu ver é socialmente agenciado e não tem nenhuma razão intrínseca. Nada é pressuposto aqui, salvo uma atenção livre e isenta desse pavor a priori.
Essa própria palavra, "genérico", eu a tomo de um matemático, Paul Cohen. Com as descobertas de Cohen (1963), conclui-se o grande monumento de pensamento começado por Cantor e Frege no final do século XIX. Gostaria de dizer aqui que os conceitos de Cohen (genericidade e forçamento) constituem, a meu ver, um topos intelectual pelo menos tão fundamental quanto o foram, em seu tempo, os famosos teoremas de Gödel. Eles atuam muito além de sua validade técnica, que até o momento os confinou na arena acadêmica dos últimos especialistas da teoria dos conjuntos. De fato, eles regram em sua ordem própria o velho problema dos indiscerníveis, refutam Leibniz e abrem o pensamento para a captura subtrativa da verdade e do sujeito.
É, portanto, ao que chamarei de procedimentos genéricos (há quatro deles: o amor, a arte, a ciência e a política), que se prendem tanto a reunião ideal de uma verdade quanto a instancia finita de tal reunião, que é, a meus olhos, um sujeito. O pensamento do genérico supõe a completa travessia das categorias do ser (múltiplo, vazio, natural, infinito...) e do evento (ultra-um, indecidível, intervenção, fidelidade...). São tantos os conceitos que ele cristaliza que é difícil dar-lhe uma imagem. Direi, contudo, que ele se prende ao problema profundo do indiscernível, do inominável, do absolutamente qualquer. Um múltiplo genérico (e tal é sempre o ser de uma verdade) é subtraído ao saber, desqualificado, inapresentável. No entanto, ele se deixa pensar.
O que se passa na arte, na ciência, na verdeira e rara política, no amor (se é que ele existe), é a vinda à luz de um indiscernível do tempo, que não é, por isso, nem um múltiplo conhecido ou reconhecido, nem uma singularidade inefável, mas que detém em seu ser-múltiplo todos os traços comuns do coletivo considerado, e, nesse sentido, é verdade de seu ser. O mistério desses procedimentos foi, em geral, remetido seja às suas condições representáveis (o saber do social, do sexual, do técnico...), seja ao além transcendente de seu Um (a esperança revolucionária, a fusão amorosa, o ek-stase poético...). Na categoria do genérico, proponho um pensamento contemporâneo desses procedimentos, que mostra que eles são simultaneamente indeterminados e completos, porque, no furo de todas as enciclopédias disponíveis, eles certificam o ser-comum, o fundo múltiplo, do lugar de onde procedem.
Um sujeito é então um momento finito desse certificado. Um sujeito certifica localmente. Ele só se sustenta por um procedimento genérico, e não há, portanto, stricto sensu, senão sujeito artístico, amoroso, científico ou político.
A matemática é citada aqui para que se torne manifesta sua essência ontológica. Assim como as ontologias da Presença citam e comentam os grandes poemas de Hölderlin, de Trakl ou de Celan, e ninguém condena que o texto poético seja ao mesmo tempo exposto e incisado, também é preciso conceder-me, sem fazer a empresa pender para o lado da epistemologia (não mais que a de Heidegger para o lado da simples estética), o direito de citar e incisar o texto matemático. Pois o que é esperado dessa operação é menos um saber das matemáticas do que a determinação do ponto em que o dizer do ser advém, em excesso temporal sobre si mesmo, como uma verdade, sempre artística, científica, política ou amorosa.
É uma imposição da época que a possibilidade de citar as matemáticas seja exigível para que verdade e sujeito sejam pensáveis no seu ser. Que me seja permitido dizer que essas citações são, no fim das contas, mais universalmente acessíveis, e unívocas, do que as dos poetas.
As matemáticas têm um poder próprio de fascinar e de apavorar que a meu ver é socialmente agenciado e não tem nenhuma razão intrínseca. Nada é pressuposto aqui, salvo uma atenção livre e isenta desse pavor a priori.