quinta-feira, 30 de abril de 2015

O SER E O EVENTO (5)

[ALAIN BADIOU; O SER E O EVENTO; INTRODUÇÃO; JZE; EDITORA UFRJ]


O perigo é que, se os filósofos podem ficar desgostosos por saber que, desde os gregos, a ontologia tem a forma de uma disciplina separada, os matemáticos não fiquem nada satisfeitos com isso. Conheço o ceticismo, e até o desprezo divertido, com que os matemáticos acolhem esse gênero de revelação acerca de sua disciplina. Isso não me melindra, tanto mais que conto estabelecer neste livro o seguinte: é da essência da ontologia efetuar-se na exclusão reflexiva de sua identidade. Precisamente para aquele que sabe que é do ser-enquanto-ser que procede a verdade das matemáticas, fazer matemáticas - e especialmente matemáticas inventivas - exige que esse saber não seja em nenhum momento representado. Pois sua representação, pondo o ser em posição geral de objeto, corrompe imediatamente a necessidade, para toda efetuação ontológica, de ser desobjetivante.

Os matemáticos nos dizem: sejam matemáticos. E se o somos, ei-nos honrados nessa condição, sem ter avançado um passo quanto à designação filosófica da essência desse saber.

É, portanto, essencial para manter um debate racional sobre o uso feito aqui das matemáticas, admitir uma consequência crucial da identidade entre as matemáticas e a ontologia, que é o fato de que a filosofia está originariamente separada da ontologia. Não como um vão saber "crítico" se esforça por nos fazer crer, que a ontologia não existe, mas antes porque ela existe plenamente, de tal modo que aquilo que é dizível - e dito - do ser-enquanto-ser não pertence de maneira alguma ao domínio do discurso filosófico.

Consequentemente, nosso intuito não é uma apresentação ontológica, um tratado sobre o ser; nosso intuito é estabelecer a tese metaontológica de que as matemáticas são a historicidade do discurso do ser-enquanto-ser. E o intuito desse intuito é remeter a filosofia para a articulação pensável de dois discursos (e práticas) que não são ela: a matemática, ciência do ser, e as doutrinas intervenientes do evento, o qual, precisamente, designa "o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser".

Que a tese ontologia = matemáticas seja metaontológica exclui que ela seja matemática, isto é, ontológica. É preciso admitir aqui a estratificação do discurso. Os fragmentos matemáticos cujo uso a demonstração dessa tese prescreve são comandados por regras filosóficas, não pelas da atualidade matemática. No geral, trata-se daquela parte das matemáticas em que se enuncia historicamente que todo "objeto" é redutível a uma multiplicidade pura, ela mesma edificada sobre a inapresentação do vazio (a teoria dos conjuntos).

Tentemos, portanto, dissipar o mal-entendido. Não pretendo em absoluto que os domínios matemáticos que menciono sejam os mais "interessantes" ou mais significativos do estado atual das matemáticas. É evidente que a ontologia segue seu curso, bem adiante deles. Não digo tampouco que esses domínios estão em posição de fundamento para a discursividade matemática, mesmo que figurem, em geral, no início de todo tratado sistemático. Começar não é fundar. Minha problemática não é, já disse, a do fundamento, pois isso seria aventurar-se na arquitetura interna da ontologia, quando meu propósito é somente designar-lhe o sítio. Afirmo, contudo, que esses domínios são historicamente sintomas, cuja interpretação legitima o fato de que as matemáticas só sejam asseguradas de sua verdade na medida em que organizam o que, do ser-enquanto-ser, se deixa inscrever.

Aos filósofos, é preciso dizer, portanto, que é de um regramento definitivo da questão ontológica que pode derivar hoje a liberdade de suas operações realmente específicas. E aos matemáticos, que a dignidade ontológica de sua investigação, embora condenada à cegueira sobre si mesma, não impede que eles se interessem pelo que está em jogo, segundo outras regras, e para outros fins, na metaontologia. Que se convençam, em todo caso, de que a verdade está em jogo aí, e que é o fato de lhes ter confiado para sempre "o cuidado do ser" que a separa do saber e a abre ao evento.

Sem outra esperança contudo, mas isso basta, senão daí inferir, matematicamente, a justiça.




terça-feira, 28 de abril de 2015

O SER E O EVENTO (4)



[Alain Badiou; O Ser e o Evento; Introdução; JZE; Editora UFRJ]



Sei bem que a tese da identidade entre matemáticas e ontologia não convém nem aos filósofos nem aos matemáticos.

A "ontologia" filosófica contemporânea está inteiramente dominada pelo nome de Heidegger. Ora, para Heidegger, a ciência, de que a matemática não é distinguida, constitui o núcleo duro da metafísica, porquanto ele a dissolve na própria perda desse esquecimento em que a metafísica, desde Platão, havia fundado a certeza de seus objetos: o esquecimento do ser. O niilismo moderno, a neutralidade de pensamento têm por signo maior a onipresença técnica da ciência, a qual dispõe o esquecimento do esquecimento.

É pouco, portanto, dizer que as matemáticas - que, ao que eu saiba, ele só menciona lateralmente - não são, para Heidegger, uma via de acesso à questão original, o vetor possível de um retorno à presença dissipada. Ao contrário, elas são a própria cegueira, a grande e maior potência do Nada, a exclusão do pensamento pelo saber. É sintomático, de resto, que a instauração platônica da metafísica tenha sido acompanhada de um estabelecimento das matemáticas como paradigma. Assim, para Heidegger, pode se indicar desde a origem que as matemáticas são interiores à grande "virada" do pensamento que se efetua entre Parmênides e Platão, e pela qual o que estava em posição de abertura e de velamento se fixa e se torna, ao preço do esquecimento de sua própria origem, manejável na forma da Ideia.

O tema do debate com Heidegger dirá respeito simultaneamente, portanto, à ontologia e à essência das matemáticas, depois, por via de consequência, ao que significa que o lugar da filosofia seja "originalmente grego". Podemos abrir assim o desenvolvimento:

1. Heidegger ainda continua submetido, até em doutrina da retirada e do des-velamento, ao que, de minha parte, considero ser justamente a essência da metafísica, ou seja, a figura do ser como entrega e dom, como presença e abertura, e a da ontologia como proferição de um trajeto de proximidade. Chamarei poético esse tipo de ontologia, povoada pela dissipação da Presença e a perda da origem. Sabemos que papel desempenham os poetas, de Parmênides a René Char, passando por Hölderlin e Trakl, na exegese heideggeriana. Na Teoria do Sujeito, quando eu convocava, para os nós da análise, Ésquilo e Sófocles, Mallarmé, Hölderlin ou Rimbaud, era por seguir seus passos que eu me esforçava.

2. Ora, à sedução da proximidade poética - a que sucumbo, mal a nomeio -, oporei a dimensão radicalmente subtrativa do ser, excluído não só da representação, mas de toda apresentação. Direi que o ser, enquanto ser, não se deixa aproximar de maneira alguma, mas somente suturar em seu vazio à aspereza de uma consistência dedutiva sem aura. O ser não se difunde no ritmo e na imagem, não reina sobre a metáfora; é o soberano nulo da inferência. A ontologia poética, que - como a História - está no impasse de um excesso de presença em que o ser se esquiva, deve ser substituída pela ontologia matemática, em que se realizam, pela escrita, a des-qualificação e a inapresentação. Seja qual for o preço subjetivo disso, a filosofia deve designar, porque é do ser-enquanto-ser que se trata, a genealogia do discurso sobre o ser - e a reflexão possível de sua essência - em Cantor, Gödel ou Cohen, mais que em Hölderlin, Trakl ou Celan.

3. Há, por certo, uma historicidade grega do nascimento da filosofia, e indubitavelmente essa historicidade é atribuível à questão do ser. No entanto, não é no enigma e no fragmento poético que a origem se deixa interpretar. Essas sentenças pronunciadas sobre o ser e o não-ser na tensão do poema são encontradas igualmente na Índia, na Pérsia ou na China. Se a filosofia - que é a disposição para designar onde intervêm as questões conjuntas do ser e d'o-que-advém - nasce na Grécia, é porque aí a ontologia estabelece, com os primeiros matemáticos dedutivos, a forma obrigatória de seu discurso. É o intricamento filosófico-matemático - legível até no poema de Parmênides pelo uso do raciocínio apagógico - que faz da Grécia o sítio original da filosofia, e define, até Kant, o domínio "clássico" de seus objetos.

No fundo, afirmar que as matemáticas efetuam a ontologia desagrada aos filósofos porque essa tese os despoja por completo do que continuava a ser o centro de gravidade de sua fala, o último refúgio de sua identidade. As matemáticas, de fato, não têm hoje necessidade alguma da filosofia, e assim, podemos dizer, o discurso sobre o ser se perpetua "sozinho". É característico, aliás, que esse "hoje" seja determinado pela criação da teoria dos conjuntos, da lógica matemática, e depois da teoria das categorias e dos topoi. Esse esforço, ao mesmo tempo reflexivo e intramatemático, torna a matemática segura o bastante do seu ser - embora ainda cegamente - para atender doravante às necessidades de seu avanço.




O SER E O EVENTO (3)


[Introdução; O SER E O EVENTO; ALAIN BADIOU; JZE; Editora UFRJ]


A consistência produtiva do pensamento dito "formal" não lhe pode vir unicamente de seu arcabouço lógico. Ele não é - justamente - uma forma, uma episteme, ou um método. É uma ciência singular. É isso que o sutura ao ser (vazio), ponto em que as matemáticas se desvinculam da lógica pura, que estabelece sua historicidade, os impasses sucessivos, as refusões espetaculares, e a unidade sempre reconhecida. Sob esse aspecto, para o filósofo, o corte decisivo, em que a matemática se pronuncia cegamente sobre sua própria essência, é criação de Cantor. Somente aí é finalmente significado que, seja qual for a prodigiosa diversidade dos "objetos" e das "estruturas" matemáticas, eles são todos designáveis como multiplicidades puras edificadas, de maneira regrada, a partir unicamente do conjunto vazio. A questão da natureza exata da relação das matemáticas com o ser está, portanto, inteiramente concentrada - na época em que estamos - na decisão axiomática que autoriza a teoria dos conjuntos.

O fato de essa axiomática estar ela própria em crise, desde que Cohen estabeleceu que o sistema de Zermelo-Fraenkel não podia prescrever o tipo de multiplicidade do contínuo, só podia aguçar minha convicção de que ali se disputava uma partida crucial, ainda que absolutamente despercebida, relativa ao poder da linguagem no tocante ao que, do ser-enquanto-ser, se deixa matematicamente pronunciar. Parecia-me irônico que, na Teoria do Sujeito, eu só tivesse utilizado a homogeneidade "conjuntista" da linguagem matemática como paradigma das categorias do materialismo. Divisava, além disso, consequências muito agradáveis para a asserção: "matemáticas = ontologia".

Em primeiro lugar, esta asserção nos livra da venerável busca do "fundamento" das matemáticas, pois o caráter apodíctico dessa disciplina é ganho diretamente pelo próprio ser, que ela pronuncia. 

Em segundo lugar, ela esvazia o problema, igualmente antigo, da natureza dos objetos matemáticos. Objetos ideais (platonismo)? Objetos extraídos por abstração da substância sensível (Aristóteles)? Ideias inatas (Descartes)? Objetos construídos na intuição pura (Kant)? Na intuição operatória finita (Brower)? Convenções de escrita (formalismo)? Construções transitivas de lógica pura, tautologias (logicismo)? Se o que enuncio é defensável, a verdade é que não há objetos matemáticos. As matemáticas não apresentam, no sentido estrito, nada, sem que por isso sejam um jogo vazio, pois nada ter a apresentar, salvo a própria apresentação, isto é, o Múltiplo, e jamais convir assim à forma de ob-jeto, é certamente uma condição de todo discurso sobre o ser enquanto ser.

Em terceiro lugar, no tocante à "aplicação" das matemáticas às ciências ditas da natureza, a cujo propósito indagamos periodicamente o que autoriza seu sucesso - para Descartes ou Newton foi preciso Deus, para Kant, o sujeito transcendental, após o que a questão não foi mais seriamente praticada, senão por Bachelard, numa visão ainda constituinte, e pelos adeptos americanos da estratificação das linguagens -, vemos de imediato a luz que lança sobre isso o fato de que as matemáticas sejam concebidas como ciência, em qualquer hipótese, de tudo que é, enquanto é. A física, por sua vez, entra na apresentação. Ela precisa de mais, ou antes, de outra coisa. Mas sua compatibilidade com as matemáticas é de princípio.

Naturalmente, os filósofos estiveram muito longe de ignorar que devia haver uma ligação entre a existência das matemáticas e a questão do ser. A função paradigmática das matemáticas corre desde Platão (e, sem dúvida de Parmênides) a Kant, que ao mesmo tempo leva seu uso ao ápice - a ponto de saudar, no nascimento das matemáticas, indexado a Tales, um evento salvador para toda a humanidade (essa era também a opinião de Espinosa) - e, pela "inversão copernicana", esgota seu alcance, pois é o fechamento de todo acesso ao ser-em-si que funda a universalidade (humana, demasiadamente humana) das matemáticas. A partir disso, fora Husserl, que é um grande clássico atrasado, a filosofia moderna (entendamos: pós-kantiana) não será mais obsedada senão pelo paradigma histórico, e, afora algumas exceções louvadas e rejeitadas, como Cavaillès e Lautman, abandonará as matemáticas à sofistica linguageira anglo-saxã. Na França, é preciso dizê-lo, até Lacan. 

É que os filósofos, que julgavam ter eles próprios constituído o campo onde a questão do ser ganha sentido, dipuseram, desde Platão, as matemáticas como modelo da certeza, ou como exemplo da identidade, embaraçando-se depois na posição especial dos "objetos" que articulavam essa certeza ou essas idealidades. Daí uma relação ao mesmo tempo permanente e distorcida  entre filosofia e matemática, a primeira oscilando, para avaliar a segunda, entre a dignidade eminente do paradigma racional e o desprezo em que era mantida a insignificância de seus "objetos". De fato, que podiam valer números e figuras - categorias da "objetividade" matemática durante vinte e três séculos - comparados a Natureza, ao Bem, a Deus ou ao Homem? A não ser pelo fato de que a "maneira de pensar" em que esses magros objetos brilhavam sob as luzes da certeza demonstrativa parecia abrir caminho para certezas menos precárias sobre as entidades muito mais gloriosas da especulação.

No máximo, se chegamos a decifrar o que diz Aristóteles, Platão imaginava uma arquitetura matemática do ser, uma função transcendente dos números ideais. Ele recompunha igualmente um cosmo a partir dos polígonos regulares, é o que lemos no Timeu. Mas essa empresa, que encadeia o ser como Todo (a fantasia do mundo) a um estado dado das matemáticas, pode engendrar apenas imagens perecíveis. A física cartesiana escapou a isso.

A tese que sustento não declara em absoluto que o ser é matemático, isto é, composto de objetividades matemáticas. Não é uma tese sobre o mundo, mas sobre o discurso. Ela afirma que as matemáticas, em todo seu devir histórico, pronunciam o que é dizível do ser-enquanto-ser. Longe de se reduzir a tautologias (o ser é o que é) ou a Mistérios (aproximação sempre diferida de uma Presença), a ontologia é uma ciência rica, complexa, inacabável, submetida ao duro jogo de uma fidelidade (no caso, a fidelidade dedutiva), e é assim que se revela que, na mera organização do discurso do que se subtrai a toda apresentação, podemos ter diante de nós uma tarefa infinita e rigorosa.

O ressentimento dos filósofos provém unicamente de que, se é exato que foram os filósofos que formularam a questão do ser, não foram eles, mas os matemáticos, que efetuaram a resposta a essa questão. Tudo que sabemos, e poderemos jamais saber, do ser-enquanto-ser, é disposto, na mediação de uma teoria pura do múltiplo, pela historicidade discursiva das matemáticas.

Russel dizia - sem acreditar nisso, é claro; na verdade ninguém jamais acreditou, salvo os ignorantes, o que certamente Russel não era - que as matemáticas são um discurso em que não se sabe do que se fala, nem que o que se diz é verdade. As matemáticas são, ao contrário, o único discurso que "sabe" absolutamente do que fala: o ser, como tal, ainda que esse saber não tenha nenhuma necessidade de ser refletido de maneira intramatemática, pois o ser não é um objeto, nem prodigaliza objetos. E é também o único, como se sabe, em que se tem a garantia integral, e o critério, da verdade do que se diz, a tal ponto que essa verdade é a única integralmente transmissível jamais encontrada.


    


  

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O SER E O EVENTO (2)



[Introdução; O SER E O EVENTO; ALAIN BADIOU; Jorge Zahar Editor; Editora UFRJ]



O enunciado (filosófico) segundo o qual as matemáticas são a ontologia - a ciência-do-ser-enquanto-ser - foi a réstia de luz que iluminou a cena especulativa que, em minha Teoria do Sujeito, eu havia limitado, pressupondo pura e simplesmente que "havia" subjetivação. A compatibilidade desta tese com uma ontologia possível me preocupava, pois a força - e a absoluta fraqueza - do "velho marxismo", do materialismo dialético, fora postular tal compatibilidade sob a forma da generalidade das leis da dialética, isto é, afinal da contas, do isomorfismo entre a dialética da natureza e a dialética da história. Sem dúvida, esse isomorfismo (hegeliano) era natimorto. Quando nos batemos, até hoje, do lado de Prigogine e da física atômica para encontrar aí corpúsculos dialéticos, não passamos de sobreviventes de uma batalha que nunca foi seriamente travada senão sob as injunções um tanto brutais do Estado stalinista. A Natureza e sua dialética nada tem a ver com isso. Mas que o processo-sujeito seja compatível com o que é pronunciável - ou pronunciado - do ser, eis uma dificuldade séria, que, aliás, eu havia apontado na pergunta feita sem rodeios por Jacques-Alain Miller a Lacan em 1964: "Qual é sua ontologia?" Nosso mestre, esperto, respondeu por uma alusão ao não-ente, o que era apropriado, mas curto. Da mesma maneira, Lacan, cuja obsessão matemática só fez crescer com o tempo, havia indicado que a lógica pura era "ciência do real". O real continua sendo, contudo, uma categoria do sujeito.

Tateei durante vários anos em torno dos impasses da lógica - uma exegese cerrada dos teoremas de Lowënhein-Gödel, de Tarski - sem ultrapassar o quadro da Teoria do Sujeito senão pela sutileza técnica. Sem me dar conta, eu continuava sob o domínio de uma tese logicista, que sustenta que a necessidade dos enunciados lógico-matemáticos é formal, porquanto resulta da erradicação de todo efeito de sentido, e que, de todo modo, não convém interrogar sobre aquilo por que esses enunciados são responsáveis, fora de sua consistência. Eu me enredava na consideração de que, supondo que há um referente do discurso lógico-matemático, não escapávamos da alternativa de pensá-lo, seja como "objeto" obtido por abstração (empirismo), seja como Ideia supra-sensível (platonismo), dilema em que nos encurrala a distinção anglo-saxã universalmente reconhecida entre as ciências "formais" e as ciências "empíricas". Nada disso era coerente com a clara doutrina lacaniana segundo a qual o real é o impasse da formalização. Eu estava no caminho errado.


Foi finalmente ao acaso de pesquisas bibliográficas e técnicas sobre o par discreto/contínuo que passei a pensar que era preciso mudar de terreno, e formular, quanto às matemáticas, uma tese radical. Pois o que me pareceu constituir a essência do famoso "problema do contínuo" era que tocávamos aí um obstáculo intrínseco ao pensamento matemático, em que se dizia o impossível próprio que lhe funda o domínio. Considerando bem os paradoxos aparentes das investigações recentes sobre a relação entre um múltiplo e o conjunto de suas partes, acabei por pensar que só havia aí figuras inteligíveis se admitíssemos de antemão que o Múltiplo seja, para os matemáticos, não um conceito (formal) construído e transparente, mas um real cujo descompasso interior, e o impasse, a teoria manifestava.


Cheguei então à certeza de que era preciso postular que as matemáticas escrevem aquilo que, do próprio ser, é pronunciável no campo de uma teoria pura do Múltiplo. Toda a história do pensamento racional pareceu-me esclarecer-se a partir do momento em que adotávamos a hipótese de que as matemáticas, longe de serem um jogo sem objeto, extraem a severidade excepcional da sua lei do fato de estarem condenadas a sustentar o discurso ontológico. Por uma inversão da questão kantiana já não se tratava de perguntar: "Como a matemática pura é possível?" e de responder: graças ao sujeito transcendental. Mas sim: sendo a matemática pura ciência do ser, como um sujeito é possível?





quarta-feira, 15 de abril de 2015

O SER E O EVENTO (1)





[Parte 1 da Introdução do livro "O SER E O EVENTO" de autoria de ALAIN BADIOU]


Admitamos que hoje, na escala mundial, seja possível começar a análise do estado da filosofia pela suposição dos três enunciados que se seguem:

1. Heidegger é o último filósofo universalmente reconhecível.

2. A figura da racionalidade científica é conservada como paradigma, de maneira dominante, pelos dispositivos de pensamento, sobretudo norte-americanos, que se seguiram às mutações matemáticas, às da lógica e aos trabalhos do círculo de Viena.

3. Está em desenvolvimento uma doutrina pós-cartesiana do sujeito, cuja origem pode ser atribuída a práticas não filosóficas (a política, ou a relação instituída com as "doenças mentais"), e cujo regime de interpretação, marcado pelos nomes de Marx (e Lenin), de Freud (e Lacan), está enredado em operações, clínicas ou militantes, que excedem o discurso transmissível.

Que há de comum nestes três enunciados? Não há dúvida de que designam, cada um a sua maneira, o fecho de uma época inteira do pensamento e de seus desafios. Heidegger, no elemento da desconstrução da metafísica, pensa a época como regida por um esquecimento inaugural, e propõe um retorno grego. A corrente "analítica" anglo-saxã desqualifica a maior parte das frases da filosofia clássica como desprovidas de sentido, ou limitadas ao exercício livre de um jogo de linguagem. Marx anunciava o fim da filosofia, e sua realização prática. Lacan fala de "antifilosofia", e prescreve ao imaginário a totalização especulativa.

Por outro lado, o que há de incongruente nestes enunciados salta aos olhos. A posição paradigmática da ciência, tal como, até em sua negação anarquizante, ela organiza o pensamento anglo-saxão, é assinalada por Heidegger como um efeito último, e niilista, da disposição metafísica, ao passo que Freud e Marx conservam seus ideais, e que o próprio Lacan reconstituía nela, pela lógica e a topologia, os esteios de eventuais matemas. A ideia de uma emancipação, ou de uma salvação, é proposta por Marx ou Lenin no modo de uma revolução social, mas é considerada por Freud ou Lacan com um pessimismo cético, considerada por Heidegger na antecipação retroativa do "retorno dos deuses", enquanto, grosso modo, os americanos se contentam com o consenso em torno dos procedimentos da democracia representativa.

Há, portanto, acordo geral quanto a convicção de que nenhuma sistemática especulativa é concebível, e de que está encerrada a época em que a proposição de uma doutrina do nó ser/não-ser/pensamento (se admitirmos que é desse nó que, desde Parmênides, se origina o que chamamos "filosofia") podia ser feita na forma de um discurso acabado. O tempo do pensamento está aberto para um regime de apreensão diferente.

Há desacordo quanto à questão de saber se essa abertura, cuja essência é encerrar a idade metafísica, se indica como revolução, como retorno, ou como crítica.

Minha própria intervenção nessa conjuntura consiste em traçar nela uma diagonal, pois o trajeto de pensamento que tento passa por três pontos suturados, cada um, num dos três lugares que os enunciados acima designam. 

- Com Hidegger, vamos sustentar que é do ângulo da questão ontológica que se sustenta a re-qualificação da filosofia como tal.

- Com a filosofia analítica, afirmaremos que a revolução matemático-lógica de Frege-Cantor fixa orientações novas para o pensamento.

- Admitiremos, por fim, que nenhum aparato conceitual é pertinente se ele não for homogêneo às orientações teórico-práticas da doutrina moderna do sujeito, ela própria interior a processos práticos (clínicos ou políticos).

Esse trajeto remete a periodizações imbricadas,
cuja unificação, a meu ver arbitrária, conduziria à escolha unilateral de uma das três orientações contra as demais. Vivemos uma época complexa, se não confusa, visto que as rupturas e as continuidades de que ela se entretece não se deixam subsumir sob um vocabulário único. Não há hoje "uma" revolução (ou "um" retorno, ou "uma" crítica). Eu tenderia a resumir assim o múltiplo temporal descompassado que organiza nossa situação:

1. Somos contemporâneos de uma terceira época da ciência, após a grega e a galileana. A cesura nomeável que abre esta terceira época não é (como no caso da grega) uma invenção - a das matemáticas demonstrativas -, nem (como a galileana) um corte - aquele que matematiza o discurso físico. É uma reorganização, a partir da qual se revelam a natureza da base matemática da racionalidade e o caráter da decisão de pensamento que a estabelece.

2. Somos igualmente contemporâneos de uma segunda época da doutrina do Sujeito, que não é mais o sujeito fundador, centrado e reflexivo, cujo tema se estende de Descartes a Hegel, e ainda permanece legível até Marx e Freud (e até Husserl e Sartre). O sujeito contemporâneo é vazio, clivado, a-substancial, irreflexivo. Aliás, ele pode apenas ser suposto no tocante a processos particulares cujas condições são rigorosas.

3. Somos, por fim, contemporâneos de um começo no que diz respeito à doutrina da verdade, depois que sua relação de consecutividade orgânica com o saber se desfez. Percebemos retroativamente que, até agora, reinou absoluta o que chamarei aqui a veridicidade; e, por estranho que isso possa parecer, convém dizer que a verdade é uma palavra nova na Europa (e alhures). De resto, esse tema da verdade atravessa Heidegger (que é o primeiro a subtraí-lo ao saber), os matemáticos (que no fim do século XIX romperam tanto com o objeto quanto com a adequação) e as teorias modernas do sujeito (que excentram a verdade de sua pronunciação subjetiva).

A tese inicial de minha empreitada, aquela a partir da qual dispomos o imbricamento das periodizações, extraindo o sentido de cada uma, é a seguinte: a ciência do ser-enquanto-ser existe desde os gregos, pois esse é o estatuto e o sentido das matemáticas. Somente hoje, porém, temos os meios de saber tal coisa. Dessa tese decorre que a filosofia não tem por centro a ontologia - a qual existe como disciplina exata e separada -, mas circula entre essa ontologia, as teorias modernas do sujeito e sua própria história. O complexo contemporâneo das condições da filosofia abarca, por certo, tudo a que se referem meus três enunciados primeiros: a história do pensamento "ocidental", as matemáticas pós-cantorianas, a psicanálise, a arte contemporânea e a política. A filosofia nem coincide com nenhuma dessas condições, nem elabora sua totalidade. Ela deve apenas propor um quadro conceitual onde possa se refletir a compossibilidade contemporânea desses elementos. Só o pode fazer - pois é isso que a despoja de toda ambição fundadora, em que se perderia - designando entre suas próprias condições, e como situação discursiva singular, a própria ontologia, sob a forma das matemáticas puras. É isso, propriamente, o que a liberta, e a consagra finalmente ao zelo das verdades.

     

quinta-feira, 9 de abril de 2015

DESERTO DO SAARA ENCHE A AMAZÔNIA DE POEIRA


[Notícia publicada no jornal O GLOBO]


A transferência de poeira do deserto do Saara para a Amazônia já era conhecida, mas agora cientistas mediram o volume de material transportado.

Usando satélites, a NASA estimou que, por ano, 182 milhões de toneladas de poeira são carregados pelo vento e cruzam os 2,5 mil quilômetros que separam a América do Sul da África, sendo que 27,7 milhões de toneladas da poeira, o suficiente para encher 105 mil caminhões, são depositadas na floresta.

 


POST-SCRIPTUM:

Esse é o tipo de notícia que me deixa particularmente perplexo.

Quem sabe que tipo de consequência potencialmente danosa pode advir para a floresta amazônica ao longo do tempo?



sábado, 4 de abril de 2015

SOMOS VIÁVEIS? (2)


[ARNALDO BLOCH; O GLOBO - SEGUNDO CADERNO; 07.03.2015]


Pouco tempo atrás, acreditávamos que havíamos chegado a um estágio em que o arsenal nuclear se reduziria até ser coisa do passado. O que vemos hoje? Chantagem nuclear e potências armadas até os dentes. Acreditávamos que a democracia era o caminho definitivo, universal.

O que vemos? Opositores sendo assassinados na Rússia, um juiz que investiga o governo sendo baleado na Argentina, um governo democrata nos EUA que espiona seus parceiros, colossos de corrupção por toda a parte e um esforço por debelá-la menos associado à pura justiça e mais a serviço do puro interesse político, num jogo de troca de posto que se eterniza.




Acreditávamos que o racismo e a xenofobia seriam em breve varridos do chamado velho mundo. O que vemos? A Europa em crise, polvilhada de poderosos partidos de extrema direita que ganham popularidade ano a ano, fechando os olhos para a exploração sanguinária que promoveram contra os povos que hoje querem expulsar.





Acreditávamos que os países de maioria muçulmana rumavam para uma discussão profunda sobre suas sociedades, assinalada pela Primavera Árabe. O que vemos um ano depois? A ascensão do Estado Islâmico, enterrando populações vivas e empreendendo um programa de expansão com tentáculos invisíveis pelo mundo inteiro, usando a tecnologia digital para uma campanha de recrutamento planetária.

 

Acreditávamos que a cultura continuaria a dialogar com a ciência e a filosofia em busca de uma boa interseção entre a razão e os mistérios que ainda (talvez nunca) decifraremos. O que vemos? A ciência demonizada e um crescimento cada vez maior da escravidão às crendices e às religiões, numa marcha que arrisca jogar a Humanidade de volta à Idade Média. E, paralelamente, um paradoxal culto cientificista em busca de respostas objetivas para tudo. É a era dos especialistas: tenta-se assassinar o mistério, inclusive a subjetividade da arte, que se institucionaliza.



Nós, porta-vozes dos feitos e desfeitos da Humanidade, que se crê no topo da evolução, deveríamos nos perguntar, antes mesmo de nos situarmos no ranking evolucionário, se a espécie é, simplesmente, viável, ou não.

Se não está destinada a se extinguir muito antes que milhões de outras espécies desapareçam. Se isto acontecer, quem decidirá, divulgará e publicará notícias sobre o nosso papel na História do Universo?


POST-SCRIPTUM:





É preciso dizer mais?