[ALAIN BADIOU; O SER E O EVENTO; INTRODUÇÃO; JZE; EDITORA UFRJ]
O perigo é que, se os filósofos podem ficar desgostosos por saber que, desde os gregos, a ontologia tem a forma de uma disciplina separada, os matemáticos não fiquem nada satisfeitos com isso. Conheço o ceticismo, e até o desprezo divertido, com que os matemáticos acolhem esse gênero de revelação acerca de sua disciplina. Isso não me melindra, tanto mais que conto estabelecer neste livro o seguinte: é da essência da ontologia efetuar-se na exclusão reflexiva de sua identidade. Precisamente para aquele que sabe que é do ser-enquanto-ser que procede a verdade das matemáticas, fazer matemáticas - e especialmente matemáticas inventivas - exige que esse saber não seja em nenhum momento representado. Pois sua representação, pondo o ser em posição geral de objeto, corrompe imediatamente a necessidade, para toda efetuação ontológica, de ser desobjetivante.
Os matemáticos nos dizem: sejam matemáticos. E se o somos, ei-nos honrados nessa condição, sem ter avançado um passo quanto à designação filosófica da essência desse saber.
É, portanto, essencial para manter um debate racional sobre o uso feito aqui das matemáticas, admitir uma consequência crucial da identidade entre as matemáticas e a ontologia, que é o fato de que a filosofia está originariamente separada da ontologia. Não como um vão saber "crítico" se esforça por nos fazer crer, que a ontologia não existe, mas antes porque ela existe plenamente, de tal modo que aquilo que é dizível - e dito - do ser-enquanto-ser não pertence de maneira alguma ao domínio do discurso filosófico.
Consequentemente, nosso intuito não é uma apresentação ontológica, um tratado sobre o ser; nosso intuito é estabelecer a tese metaontológica de que as matemáticas são a historicidade do discurso do ser-enquanto-ser. E o intuito desse intuito é remeter a filosofia para a articulação pensável de dois discursos (e práticas) que não são ela: a matemática, ciência do ser, e as doutrinas intervenientes do evento, o qual, precisamente, designa "o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser".
Que a tese ontologia = matemáticas seja metaontológica exclui que ela seja matemática, isto é, ontológica. É preciso admitir aqui a estratificação do discurso. Os fragmentos matemáticos cujo uso a demonstração dessa tese prescreve são comandados por regras filosóficas, não pelas da atualidade matemática. No geral, trata-se daquela parte das matemáticas em que se enuncia historicamente que todo "objeto" é redutível a uma multiplicidade pura, ela mesma edificada sobre a inapresentação do vazio (a teoria dos conjuntos).
Tentemos, portanto, dissipar o mal-entendido. Não pretendo em absoluto que os domínios matemáticos que menciono sejam os mais "interessantes" ou mais significativos do estado atual das matemáticas. É evidente que a ontologia segue seu curso, bem adiante deles. Não digo tampouco que esses domínios estão em posição de fundamento para a discursividade matemática, mesmo que figurem, em geral, no início de todo tratado sistemático. Começar não é fundar. Minha problemática não é, já disse, a do fundamento, pois isso seria aventurar-se na arquitetura interna da ontologia, quando meu propósito é somente designar-lhe o sítio. Afirmo, contudo, que esses domínios são historicamente sintomas, cuja interpretação legitima o fato de que as matemáticas só sejam asseguradas de sua verdade na medida em que organizam o que, do ser-enquanto-ser, se deixa inscrever.
Aos filósofos, é preciso dizer, portanto, que é de um regramento definitivo da questão ontológica que pode derivar hoje a liberdade de suas operações realmente específicas. E aos matemáticos, que a dignidade ontológica de sua investigação, embora condenada à cegueira sobre si mesma, não impede que eles se interessem pelo que está em jogo, segundo outras regras, e para outros fins, na metaontologia. Que se convençam, em todo caso, de que a verdade está em jogo aí, e que é o fato de lhes ter confiado para sempre "o cuidado do ser" que a separa do saber e a abre ao evento.
Sem outra esperança contudo, mas isso basta, senão daí inferir, matematicamente, a justiça.