[Introdução; O SER E O EVENTO; ALAIN BADIOU; Jorge Zahar Editor; Editora UFRJ]
O enunciado (filosófico) segundo o qual as matemáticas são a ontologia - a ciência-do-ser-enquanto-ser - foi a réstia de luz que iluminou a cena especulativa que, em minha Teoria do Sujeito, eu havia limitado, pressupondo pura e simplesmente que "havia" subjetivação. A compatibilidade desta tese com uma ontologia possível me preocupava, pois a força - e a absoluta fraqueza - do "velho marxismo", do materialismo dialético, fora postular tal compatibilidade sob a forma da generalidade das leis da dialética, isto é, afinal da contas, do isomorfismo entre a dialética da natureza e a dialética da história. Sem dúvida, esse isomorfismo (hegeliano) era natimorto. Quando nos batemos, até hoje, do lado de Prigogine e da física atômica para encontrar aí corpúsculos dialéticos, não passamos de sobreviventes de uma batalha que nunca foi seriamente travada senão sob as injunções um tanto brutais do Estado stalinista. A Natureza e sua dialética nada tem a ver com isso. Mas que o processo-sujeito seja compatível com o que é pronunciável - ou pronunciado - do ser, eis uma dificuldade séria, que, aliás, eu havia apontado na pergunta feita sem rodeios por Jacques-Alain Miller a Lacan em 1964: "Qual é sua ontologia?" Nosso mestre, esperto, respondeu por uma alusão ao não-ente, o que era apropriado, mas curto. Da mesma maneira, Lacan, cuja obsessão matemática só fez crescer com o tempo, havia indicado que a lógica pura era "ciência do real". O real continua sendo, contudo, uma categoria do sujeito.
Tateei durante vários anos em torno dos impasses da lógica - uma exegese cerrada dos teoremas de Lowënhein-Gödel, de Tarski - sem ultrapassar o quadro da Teoria do Sujeito senão pela sutileza técnica. Sem me dar conta, eu continuava sob o domínio de uma tese logicista, que sustenta que a necessidade dos enunciados lógico-matemáticos é formal, porquanto resulta da erradicação de todo efeito de sentido, e que, de todo modo, não convém interrogar sobre aquilo por que esses enunciados são responsáveis, fora de sua consistência. Eu me enredava na consideração de que, supondo que há um referente do discurso lógico-matemático, não escapávamos da alternativa de pensá-lo, seja como "objeto" obtido por abstração (empirismo), seja como Ideia supra-sensível (platonismo), dilema em que nos encurrala a distinção anglo-saxã universalmente reconhecida entre as ciências "formais" e as ciências "empíricas". Nada disso era coerente com a clara doutrina lacaniana segundo a qual o real é o impasse da formalização. Eu estava no caminho errado.
Foi finalmente ao acaso de pesquisas bibliográficas e técnicas sobre o par discreto/contínuo que passei a pensar que era preciso mudar de terreno, e formular, quanto às matemáticas, uma tese radical. Pois o que me pareceu constituir a essência do famoso "problema do contínuo" era que tocávamos aí um obstáculo intrínseco ao pensamento matemático, em que se dizia o impossível próprio que lhe funda o domínio. Considerando bem os paradoxos aparentes das investigações recentes sobre a relação entre um múltiplo e o conjunto de suas partes, acabei por pensar que só havia aí figuras inteligíveis se admitíssemos de antemão que o Múltiplo seja, para os matemáticos, não um conceito (formal) construído e transparente, mas um real cujo descompasso interior, e o impasse, a teoria manifestava.
Cheguei então à certeza de que era preciso postular que as matemáticas escrevem aquilo que, do próprio ser, é pronunciável no campo de uma teoria pura do Múltiplo. Toda a história do pensamento racional pareceu-me esclarecer-se a partir do momento em que adotávamos a hipótese de que as matemáticas, longe de serem um jogo sem objeto, extraem a severidade excepcional da sua lei do fato de estarem condenadas a sustentar o discurso ontológico. Por uma inversão da questão kantiana já não se tratava de perguntar: "Como a matemática pura é possível?" e de responder: graças ao sujeito transcendental. Mas sim: sendo a matemática pura ciência do ser, como um sujeito é possível?
Tateei durante vários anos em torno dos impasses da lógica - uma exegese cerrada dos teoremas de Lowënhein-Gödel, de Tarski - sem ultrapassar o quadro da Teoria do Sujeito senão pela sutileza técnica. Sem me dar conta, eu continuava sob o domínio de uma tese logicista, que sustenta que a necessidade dos enunciados lógico-matemáticos é formal, porquanto resulta da erradicação de todo efeito de sentido, e que, de todo modo, não convém interrogar sobre aquilo por que esses enunciados são responsáveis, fora de sua consistência. Eu me enredava na consideração de que, supondo que há um referente do discurso lógico-matemático, não escapávamos da alternativa de pensá-lo, seja como "objeto" obtido por abstração (empirismo), seja como Ideia supra-sensível (platonismo), dilema em que nos encurrala a distinção anglo-saxã universalmente reconhecida entre as ciências "formais" e as ciências "empíricas". Nada disso era coerente com a clara doutrina lacaniana segundo a qual o real é o impasse da formalização. Eu estava no caminho errado.
Foi finalmente ao acaso de pesquisas bibliográficas e técnicas sobre o par discreto/contínuo que passei a pensar que era preciso mudar de terreno, e formular, quanto às matemáticas, uma tese radical. Pois o que me pareceu constituir a essência do famoso "problema do contínuo" era que tocávamos aí um obstáculo intrínseco ao pensamento matemático, em que se dizia o impossível próprio que lhe funda o domínio. Considerando bem os paradoxos aparentes das investigações recentes sobre a relação entre um múltiplo e o conjunto de suas partes, acabei por pensar que só havia aí figuras inteligíveis se admitíssemos de antemão que o Múltiplo seja, para os matemáticos, não um conceito (formal) construído e transparente, mas um real cujo descompasso interior, e o impasse, a teoria manifestava.
Cheguei então à certeza de que era preciso postular que as matemáticas escrevem aquilo que, do próprio ser, é pronunciável no campo de uma teoria pura do Múltiplo. Toda a história do pensamento racional pareceu-me esclarecer-se a partir do momento em que adotávamos a hipótese de que as matemáticas, longe de serem um jogo sem objeto, extraem a severidade excepcional da sua lei do fato de estarem condenadas a sustentar o discurso ontológico. Por uma inversão da questão kantiana já não se tratava de perguntar: "Como a matemática pura é possível?" e de responder: graças ao sujeito transcendental. Mas sim: sendo a matemática pura ciência do ser, como um sujeito é possível?
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