[Introdução; O SER E O EVENTO; ALAIN BADIOU; JZE; Editora UFRJ]
A consistência produtiva do pensamento dito "formal" não lhe pode vir unicamente de seu arcabouço lógico. Ele não é - justamente - uma forma, uma episteme, ou um método. É uma ciência singular. É isso que o sutura ao ser (vazio), ponto em que as matemáticas se desvinculam da lógica pura, que estabelece sua historicidade, os impasses sucessivos, as refusões espetaculares, e a unidade sempre reconhecida. Sob esse aspecto, para o filósofo, o corte decisivo, em que a matemática se pronuncia cegamente sobre sua própria essência, é criação de Cantor. Somente aí é finalmente significado que, seja qual for a prodigiosa diversidade dos "objetos" e das "estruturas" matemáticas, eles são todos designáveis como multiplicidades puras edificadas, de maneira regrada, a partir unicamente do conjunto vazio. A questão da natureza exata da relação das matemáticas com o ser está, portanto, inteiramente concentrada - na época em que estamos - na decisão axiomática que autoriza a teoria dos conjuntos.
O fato de essa axiomática estar ela própria em crise, desde que Cohen estabeleceu que o sistema de Zermelo-Fraenkel não podia prescrever o tipo de multiplicidade do contínuo, só podia aguçar minha convicção de que ali se disputava uma partida crucial, ainda que absolutamente despercebida, relativa ao poder da linguagem no tocante ao que, do ser-enquanto-ser, se deixa matematicamente pronunciar. Parecia-me irônico que, na Teoria do Sujeito, eu só tivesse utilizado a homogeneidade "conjuntista" da linguagem matemática como paradigma das categorias do materialismo. Divisava, além disso, consequências muito agradáveis para a asserção: "matemáticas = ontologia".
Em primeiro lugar, esta asserção nos livra da venerável busca do "fundamento" das matemáticas, pois o caráter apodíctico dessa disciplina é ganho diretamente pelo próprio ser, que ela pronuncia.
Em segundo lugar, ela esvazia o problema, igualmente antigo, da natureza dos objetos matemáticos. Objetos ideais (platonismo)? Objetos extraídos por abstração da substância sensível (Aristóteles)? Ideias inatas (Descartes)? Objetos construídos na intuição pura (Kant)? Na intuição operatória finita (Brower)? Convenções de escrita (formalismo)? Construções transitivas de lógica pura, tautologias (logicismo)? Se o que enuncio é defensável, a verdade é que não há objetos matemáticos. As matemáticas não apresentam, no sentido estrito, nada, sem que por isso sejam um jogo vazio, pois nada ter a apresentar, salvo a própria apresentação, isto é, o Múltiplo, e jamais convir assim à forma de ob-jeto, é certamente uma condição de todo discurso sobre o ser enquanto ser.
Em terceiro lugar, no tocante à "aplicação" das matemáticas às ciências ditas da natureza, a cujo propósito indagamos periodicamente o que autoriza seu sucesso - para Descartes ou Newton foi preciso Deus, para Kant, o sujeito transcendental, após o que a questão não foi mais seriamente praticada, senão por Bachelard, numa visão ainda constituinte, e pelos adeptos americanos da estratificação das linguagens -, vemos de imediato a luz que lança sobre isso o fato de que as matemáticas sejam concebidas como ciência, em qualquer hipótese, de tudo que é, enquanto é. A física, por sua vez, entra na apresentação. Ela precisa de mais, ou antes, de outra coisa. Mas sua compatibilidade com as matemáticas é de princípio.
Naturalmente, os filósofos estiveram muito longe de ignorar que devia haver uma ligação entre a existência das matemáticas e a questão do ser. A função paradigmática das matemáticas corre desde Platão (e, sem dúvida de Parmênides) a Kant, que ao mesmo tempo leva seu uso ao ápice - a ponto de saudar, no nascimento das matemáticas, indexado a Tales, um evento salvador para toda a humanidade (essa era também a opinião de Espinosa) - e, pela "inversão copernicana", esgota seu alcance, pois é o fechamento de todo acesso ao ser-em-si que funda a universalidade (humana, demasiadamente humana) das matemáticas. A partir disso, fora Husserl, que é um grande clássico atrasado, a filosofia moderna (entendamos: pós-kantiana) não será mais obsedada senão pelo paradigma histórico, e, afora algumas exceções louvadas e rejeitadas, como Cavaillès e Lautman, abandonará as matemáticas à sofistica linguageira anglo-saxã. Na França, é preciso dizê-lo, até Lacan.
É que os filósofos, que julgavam ter eles próprios constituído o campo onde a questão do ser ganha sentido, dipuseram, desde Platão, as matemáticas como modelo da certeza, ou como exemplo da identidade, embaraçando-se depois na posição especial dos "objetos" que articulavam essa certeza ou essas idealidades. Daí uma relação ao mesmo tempo permanente e distorcida entre filosofia e matemática, a primeira oscilando, para avaliar a segunda, entre a dignidade eminente do paradigma racional e o desprezo em que era mantida a insignificância de seus "objetos". De fato, que podiam valer números e figuras - categorias da "objetividade" matemática durante vinte e três séculos - comparados a Natureza, ao Bem, a Deus ou ao Homem? A não ser pelo fato de que a "maneira de pensar" em que esses magros objetos brilhavam sob as luzes da certeza demonstrativa parecia abrir caminho para certezas menos precárias sobre as entidades muito mais gloriosas da especulação.
No máximo, se chegamos a decifrar o que diz Aristóteles, Platão imaginava uma arquitetura matemática do ser, uma função transcendente dos números ideais. Ele recompunha igualmente um cosmo a partir dos polígonos regulares, é o que lemos no Timeu. Mas essa empresa, que encadeia o ser como Todo (a fantasia do mundo) a um estado dado das matemáticas, pode engendrar apenas imagens perecíveis. A física cartesiana escapou a isso.
A tese que sustento não declara em absoluto que o ser é matemático, isto é, composto de objetividades matemáticas. Não é uma tese sobre o mundo, mas sobre o discurso. Ela afirma que as matemáticas, em todo seu devir histórico, pronunciam o que é dizível do ser-enquanto-ser. Longe de se reduzir a tautologias (o ser é o que é) ou a Mistérios (aproximação sempre diferida de uma Presença), a ontologia é uma ciência rica, complexa, inacabável, submetida ao duro jogo de uma fidelidade (no caso, a fidelidade dedutiva), e é assim que se revela que, na mera organização do discurso do que se subtrai a toda apresentação, podemos ter diante de nós uma tarefa infinita e rigorosa.
O ressentimento dos filósofos provém unicamente de que, se é exato que foram os filósofos que formularam a questão do ser, não foram eles, mas os matemáticos, que efetuaram a resposta a essa questão. Tudo que sabemos, e poderemos jamais saber, do ser-enquanto-ser, é disposto, na mediação de uma teoria pura do múltiplo, pela historicidade discursiva das matemáticas.
Russel dizia - sem acreditar nisso, é claro; na verdade ninguém jamais acreditou, salvo os ignorantes, o que certamente Russel não era - que as matemáticas são um discurso em que não se sabe do que se fala, nem que o que se diz é verdade. As matemáticas são, ao contrário, o único discurso que "sabe" absolutamente do que fala: o ser, como tal, ainda que esse saber não tenha nenhuma necessidade de ser refletido de maneira intramatemática, pois o ser não é um objeto, nem prodigaliza objetos. E é também o único, como se sabe, em que se tem a garantia integral, e o critério, da verdade do que se diz, a tal ponto que essa verdade é a única integralmente transmissível jamais encontrada.
O fato de essa axiomática estar ela própria em crise, desde que Cohen estabeleceu que o sistema de Zermelo-Fraenkel não podia prescrever o tipo de multiplicidade do contínuo, só podia aguçar minha convicção de que ali se disputava uma partida crucial, ainda que absolutamente despercebida, relativa ao poder da linguagem no tocante ao que, do ser-enquanto-ser, se deixa matematicamente pronunciar. Parecia-me irônico que, na Teoria do Sujeito, eu só tivesse utilizado a homogeneidade "conjuntista" da linguagem matemática como paradigma das categorias do materialismo. Divisava, além disso, consequências muito agradáveis para a asserção: "matemáticas = ontologia".
Em primeiro lugar, esta asserção nos livra da venerável busca do "fundamento" das matemáticas, pois o caráter apodíctico dessa disciplina é ganho diretamente pelo próprio ser, que ela pronuncia.
Em segundo lugar, ela esvazia o problema, igualmente antigo, da natureza dos objetos matemáticos. Objetos ideais (platonismo)? Objetos extraídos por abstração da substância sensível (Aristóteles)? Ideias inatas (Descartes)? Objetos construídos na intuição pura (Kant)? Na intuição operatória finita (Brower)? Convenções de escrita (formalismo)? Construções transitivas de lógica pura, tautologias (logicismo)? Se o que enuncio é defensável, a verdade é que não há objetos matemáticos. As matemáticas não apresentam, no sentido estrito, nada, sem que por isso sejam um jogo vazio, pois nada ter a apresentar, salvo a própria apresentação, isto é, o Múltiplo, e jamais convir assim à forma de ob-jeto, é certamente uma condição de todo discurso sobre o ser enquanto ser.
Em terceiro lugar, no tocante à "aplicação" das matemáticas às ciências ditas da natureza, a cujo propósito indagamos periodicamente o que autoriza seu sucesso - para Descartes ou Newton foi preciso Deus, para Kant, o sujeito transcendental, após o que a questão não foi mais seriamente praticada, senão por Bachelard, numa visão ainda constituinte, e pelos adeptos americanos da estratificação das linguagens -, vemos de imediato a luz que lança sobre isso o fato de que as matemáticas sejam concebidas como ciência, em qualquer hipótese, de tudo que é, enquanto é. A física, por sua vez, entra na apresentação. Ela precisa de mais, ou antes, de outra coisa. Mas sua compatibilidade com as matemáticas é de princípio.
Naturalmente, os filósofos estiveram muito longe de ignorar que devia haver uma ligação entre a existência das matemáticas e a questão do ser. A função paradigmática das matemáticas corre desde Platão (e, sem dúvida de Parmênides) a Kant, que ao mesmo tempo leva seu uso ao ápice - a ponto de saudar, no nascimento das matemáticas, indexado a Tales, um evento salvador para toda a humanidade (essa era também a opinião de Espinosa) - e, pela "inversão copernicana", esgota seu alcance, pois é o fechamento de todo acesso ao ser-em-si que funda a universalidade (humana, demasiadamente humana) das matemáticas. A partir disso, fora Husserl, que é um grande clássico atrasado, a filosofia moderna (entendamos: pós-kantiana) não será mais obsedada senão pelo paradigma histórico, e, afora algumas exceções louvadas e rejeitadas, como Cavaillès e Lautman, abandonará as matemáticas à sofistica linguageira anglo-saxã. Na França, é preciso dizê-lo, até Lacan.
É que os filósofos, que julgavam ter eles próprios constituído o campo onde a questão do ser ganha sentido, dipuseram, desde Platão, as matemáticas como modelo da certeza, ou como exemplo da identidade, embaraçando-se depois na posição especial dos "objetos" que articulavam essa certeza ou essas idealidades. Daí uma relação ao mesmo tempo permanente e distorcida entre filosofia e matemática, a primeira oscilando, para avaliar a segunda, entre a dignidade eminente do paradigma racional e o desprezo em que era mantida a insignificância de seus "objetos". De fato, que podiam valer números e figuras - categorias da "objetividade" matemática durante vinte e três séculos - comparados a Natureza, ao Bem, a Deus ou ao Homem? A não ser pelo fato de que a "maneira de pensar" em que esses magros objetos brilhavam sob as luzes da certeza demonstrativa parecia abrir caminho para certezas menos precárias sobre as entidades muito mais gloriosas da especulação.
No máximo, se chegamos a decifrar o que diz Aristóteles, Platão imaginava uma arquitetura matemática do ser, uma função transcendente dos números ideais. Ele recompunha igualmente um cosmo a partir dos polígonos regulares, é o que lemos no Timeu. Mas essa empresa, que encadeia o ser como Todo (a fantasia do mundo) a um estado dado das matemáticas, pode engendrar apenas imagens perecíveis. A física cartesiana escapou a isso.
A tese que sustento não declara em absoluto que o ser é matemático, isto é, composto de objetividades matemáticas. Não é uma tese sobre o mundo, mas sobre o discurso. Ela afirma que as matemáticas, em todo seu devir histórico, pronunciam o que é dizível do ser-enquanto-ser. Longe de se reduzir a tautologias (o ser é o que é) ou a Mistérios (aproximação sempre diferida de uma Presença), a ontologia é uma ciência rica, complexa, inacabável, submetida ao duro jogo de uma fidelidade (no caso, a fidelidade dedutiva), e é assim que se revela que, na mera organização do discurso do que se subtrai a toda apresentação, podemos ter diante de nós uma tarefa infinita e rigorosa.
O ressentimento dos filósofos provém unicamente de que, se é exato que foram os filósofos que formularam a questão do ser, não foram eles, mas os matemáticos, que efetuaram a resposta a essa questão. Tudo que sabemos, e poderemos jamais saber, do ser-enquanto-ser, é disposto, na mediação de uma teoria pura do múltiplo, pela historicidade discursiva das matemáticas.
Russel dizia - sem acreditar nisso, é claro; na verdade ninguém jamais acreditou, salvo os ignorantes, o que certamente Russel não era - que as matemáticas são um discurso em que não se sabe do que se fala, nem que o que se diz é verdade. As matemáticas são, ao contrário, o único discurso que "sabe" absolutamente do que fala: o ser, como tal, ainda que esse saber não tenha nenhuma necessidade de ser refletido de maneira intramatemática, pois o ser não é um objeto, nem prodigaliza objetos. E é também o único, como se sabe, em que se tem a garantia integral, e o critério, da verdade do que se diz, a tal ponto que essa verdade é a única integralmente transmissível jamais encontrada.
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