sábado, 29 de março de 2014

ENSINAR A PENSAR?


[Texto de autoria do professor RICARDO CORRÊA BARBOSA]


Pode-se ensinar filosofia, mas não a pensar. 

Aliás, em suas lições de Lógica, Kant nos deixou uma palavra importante sobre isso: 

"Ninguém que não possa filosofar pode-se chamar de filósofo. Mas filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício e pelo uso próprio da razão. Como é que se poderia, aprender Filosofia? Todo pensador filosófico constrói, por assim dizer, sua obra própria sobre os destroços de uma obra alheia; mas jamais se erigiu uma que tenha sido estável em todas as suas partes. (...) quem quer aprender a filosofar tem o direito de considerar todos os sistemas da Filosofia tão-somente como uma história do uso da razão e como objeto do exercício de seu talento filosófico."

"O verdadeiro filósofo, portanto, na qualidade de quem pensa por si mesmo, tem que fazer um uso livre e pessoal de sua razão, não um uso servilmente imitativo."

Nestas linhas de Kant, ouve-se o eco de sua conhecida resposta à pergunta sobre o que é Aufklärung: - pensar por si mesmo, ter a coragem de fazer uso próprio da própria razão.

Assim, o que o filosofar exige é antes a formação de uma atitude - uma atitude diante do pensamento.

Exercício sem medo, coisa de quem sabe que é na água que se aprende a nadar.


POST-SCRIPTUM:


E, concomitantemente, por aqueles que sabem que este aprendizado exige que a reflexão solitária desague na discussão em comum, na busca do melhor argumento...

E com razão.


sexta-feira, 28 de março de 2014

A VAGUIDÃO ESPECÍFICA


[Texto de autoria de Millôr Fernandes, publicado originalmente em O CRUZEIRO/1956 e republicado em "Amostra Bem-Humorada" pela EDIOURO PUBLICAÇÕES S.A. de 1997]


   "As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."
Richard Gehman


- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.

- Junto com as outras? 

- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.

- Sim senhora. Olha, o homem está aí.

- Aquele de quando choveu?

- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.

- Que é que você disse a ele?

- Eu disse pra ele continuar.

- Ele já começou?

- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.

- É bom?

- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.

- Você trouxe tudo pra cima?

- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.

- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.

- Está bem, vou ver como.


POST-SCRIPTUM:

Millôr é mesmo o cara! Que me desculpem as feministas - até porque não são apenas as mulheres que falam assim de vez em quando - mas esse texto é de 1956! Mais exemplos desse humor genial brevemente...



POLUIÇÃO



[Publicado no jornal DESTAK em 11.04.2011]


Ratos de laboratório expostos à poluição do ar causada por automóveis tiveram danos cerebrais semelhantes à perda de memória e à doença de Alzheimer. Foi o que demonstrou uma pesquisa realizada nos EUA.

Cientistas recriaram os poluentes que vêm da queima de combustíveis fósseis e expuseram ratos ao ar poluído por 15 horas por semana durante dez semanas.

As pequenas partículas de ar tinham o tamanho de 1 milésimo da largura de um cabelo humano, sendo muito pequenas para serem retidas pelo sistema de filtro dos automóveis. No entanto, exerceram danos consideráveis nos cérebros dos ratos expostos, informou o estudo. 

Cientistas concluíram que a exposição resultou em um "dano significativo" para os neurônios envolvidos na aprendizagem e na memória, e eles detectaram "sinais de inflamação associados ao envelhecimento precoce e a doença de Alzheimer".

Mais pesquisas são necessárias para determinar se os mesmos efeitos podem ser vistos em humanos. "É claro que isso leva à questão: 'como podemos proteger os moradores das cidades desse tipo de toxidade?'. Isso ainda não é sabido", concluiu o autor do estudo, Caleb Finch.


POST-SCRIPTUM:






Vamos aderir à bicicleta e ao transporte público e deixar o carro em casa minha gente! 

quinta-feira, 27 de março de 2014

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


[Editado de um artigo da autoria de José Miguel Wisnik, publicado no 'Segundo Caderno' do jornal O GLOBO em 12.02.2011]


Todos sabemos que a poesia não faz sucesso de massas. Walter Benjamin diz que o último caso, indissociável ao escândalo que provocou, é o de "As flores do Mal" de Baudelaire, que data de 1857.

Desde muito, o público de poesia tornou-se talvez o mais reduzido e esotérico entre todos os gêneros literários. Alguns fatos atestam, no entanto, a presença que a palavra poética chegou a ter no Brasil, e os efeitos inesperados e controvertidos que ela foi capaz de provocar.

Nenhum se compara aos rastros mirabolantes deixados pelo famigerado poema de Carlos Drummond de Andrade, o da "pedra no meio do caminho", publicado no seu livro de estréia, em 1930. Como pôde um poemeto obsessivo, circular, falando aparentemente de quase nada, ter mostrado essa potência de "bomba atômica", no dizer de Mário Quintana?

No poema a frase bate e rebate no objeto inexplicado que barra seu caminho, e dá voltas sobre si mesma sem sair do lugar: "No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra".

As boas consciências só se acalmam quando podem explicar o inexplicável, nomear o inominável, reduzindo o real a um sistema secundário de significados que o substitui e o apaga.

"No meio do caminho" desativava essa possibilidade: um poema sobre o puro limite, excessivamente literal, não se deixando metaforizar, e prendendo o leitor no mesmo círculo implacável em que estão presos, dentro dele, o sujeito e o objeto.

Pegos de surpresa nessa arapuca poética, os leitores tradicionalistas (numa época em que se dava, diga-se de passagem, importância à poesia) reagiram com irritação e deboche: o poema não fala de nada.

O mais curioso é que, numa fase posterior, consagrada pelo uso comum e adotada "a pedra no meio do caminho" quase como sinônimo de qualquer impasse, principalmente os triviais, inverteu-se o sinal: o poema fala de tudo.

Penso nisso quando vejo a estátua do poeta maior no banco de Copacabana.


POST-SCRIPTUM:

"No meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida das minhas retinas tão fatigadas."

Axé, Drummond!

O MAIOR RIVAL DO SUPERMAN


[Texto de autoria de Marco Moretti, publicado originalmente na revista Wizmania nº 43, em abril de 2007]


Na esteira do sucesso do Superman, lançado em quadrinhos em 1938, nos anos seguintes passaram a surgir novos super-heróis fantasiados por intermédio de editoras pequenas e variadas.

Na maioria das vezes, essas criações não passavam de plágios baratos do Homem de Aço, como o Wonder Man, criado pelo lendário Will Eisner pra revista Wonder Comics, em maio de 1939. Antes porém que Eisner chegasse a ser processado pela DC Comics, Wonder Man foi tirado de circulação logo após sua estréia. Foi só então que Eisner partiu pra criação de seu mais famoso (e mais original) personagem, o Spirit.

Contudo, a maior imitação ao Superman ainda estava por vir. Indubitavelmente, essa honra coube ao Capitão Marvel, que surgiu na Whiz Comics, em fevereiro de 1940. Filhote da então prestigiosa Fawcett Publications, o Capitão Marvel chegou a ser o campeão de vendas da categoria na década de 40. Criado pelo artista C. C. Beck e o roteirista Bill Parker, suas aventuras tinham mais humor que as do concorrente e um apelo direto junto aos garotos, que se identificaram de imediato com o alter ego insuspeito do herói, o menino Billy Batson.

Como o Superman, ele tinha força descomunal e a capacidade de voar, além de contar com poderes mágicos que eram invocados com a palavra "Shazam", sempre pronunciada quando Batson se transformava no "Mais Poderoso Mortal do Mundo".




Da mesma maneira que o Homem de Aço, que vira e mexe, enfrentava Lex Luthor, Marvel tinha como arquiinimigo um cientista malévolo (e maluco), o Dr. Silvana. Para completar, o Capitão Marvel também dispunha de um uniforme característico, com capa e um relâmpago dourado como símbolo, tão marcante como o "S" do Superman.

As semelhanças entre os dois personagens eram por demais evidentes pra que a DC aceitasse passivamentea imitação e decidiu processar a Fawcett por plágio.

A batalha judicial se arrastou por mais de uma década e foi somente em 1953 que a justiça chegou a uma decisão. Após idas e vindas entre tribunais de primeira e segunda instância, a Fawcett acabou capitulando e aceitou para de publicar as histórias do Capitão Marvel.

Foram necessários mais 20 anos pra que a DC adquirisse os direitos sobre o personagem e o revivesse em uma revista mensal, apropriadamente chamada de 'Shazam!'.

Foi somente a partir de então que o herói passou a ocupar seu lugar de direito entre os maiores super-heróis de todos os tempos. E quase em pé de igualdade com seu maior rival.



  


POST-SCRIPTUM:

Infelizmente a nova revista do Capitão Marvel lançada na década de 70, agora publicado pela DC Comics, teve vida curta. Os tempos eram outros e a ingenuidade inerente a suas histórias não fez mais sucesso. 

Porém, revisado em alguns pontos há alguns anos, o herói agora faz parte da Liga da Justiça. Nada mal para o velho Capitão, que começou como um suposto plágio do Último Filho de Krypton, hein? 


domingo, 23 de março de 2014

EXISTEM ZUMBIS?


[Publicado originalmente em GALILEU Nº 223 de fevereiro de 2010]


Existem zumbis? Sim, de acordo com o antropólogo canadense Wade Davis. Ele ficou amigo do haitiano Clairvius Narcisse, que teve sua morte documentada em 1962, mas reapareceu vivo 16 anos depois.

"Muitos haitianos acreditam que os zumbis são criados por feiticeiros, que retiram a alma da vítima para controlar o seu corpo", afirma. Ele descobriu que o procedimento era baseado em um pó que continha veneno, plantas e insetos em sua composição. "Após retirar várias amostras, descobri que uma neurotoxina chamada tetrodoxina predominava nesses 'pós de zumbi'. ela vem do baiacu, peixe que é uma iguaria no Japão e pode ser mortal se não for preparado corretamente".

O pó irritante era aplicado na pele da vítima até entrar em sua corrente sanguínea, paralisando a pessoa e causando sua morte aparente. Após o enterro, o sacerdote retirava o corpo do túmulo e o transformava em escravo para trabalhar em plantações.

Para deixar a vítima em estado de alucinação após o efeito do veneno, a comida distribuída aos zumbis era uma pasta feita de uma planta chamada "pepino de zumbi". Conhecida como figueira-do-diabo no Brasil, ela provoca febre, alucinações e amnésia.



POST-SCRIPTUM:

Interessante, não? Mais interessante ainda (e até assustador) é constatar que existem incontáveis pessoas andando por aí, obviamente vivas no sentido biológico mas aparentemente mortas em qualquer outro sentido da palavra... 

sexta-feira, 21 de março de 2014

O PODER DA ILUSÃO



[Texto de autoria de Paulo Blank]


Budha e Narciso me parecem duas posturas diferentes que podemos ter frente ao poder e a ilusão. Na história de ambos sempre me impressionou a diferença com que trataram de uma situação muito parecida. Enquanto um deles sairia pelo caminho da iluminação, o outro mergulhava para sempre no engano.

Enquanto um negava a oferta de realização dos desejos em troca de permanecer no caminho da ilusão, o outro, iludido, entregou-se ao engano e perdeu qualquer possibilidade de lidar com a realidade, ficando aprisionado em suas fantasias de poder. Em ambos, podemos reconhecer dois caminhos diferentes que somos obrigados a percorrer em nossa vida e, da escolha que fazemos, depende o rumo que ela toma.

Tirésias, o adivinho cego da mitologia grega, previu que a ninfa Liríope teria um filho que só chegaria à idade adulta se não viesse a conhecer o próprio rosto. Foi assim que Narciso veio ao mundo e cresceu deixando atrás de si um rastro que marcava a sua caminhada por uma vida sem face.

Por onde passava, pessoas de ambos os sexos se apaixonavam pelo jovem e ele, orgulhoso da própria beleza e embevecido pelo seu poder sobre os outros, não correspondia aos amantes capazes até mesmo de matar-se pelo seu amor.

Um dia, o jovem mancebo deparou-se com um lago de águas límpidas no meio de seu caminho. Narciso aproximou-se, olhou, debruçou-se, e o que viu espelhado deixou-o enlouquecido. Um belo jovem olhava para ele de dentro do espelho de água clara.





Narciso enxergou a própria face, mas, não sabendo que era sua, apaixonou-se pelo jovem que julgou ver no reflexo do lago. Fascinado pela imagem que não conseguia tocar, sofrendo na própria carne o mesmo sentimento que despertava nos outros, Narciso caiu prisioneiro de uma ilusão que, até os dias de hoje, conta o mito, o mantém prisioneiro de seu engano.

No outro lado do andar dos homens, vamos encontrar Budha. Em sua busca de iluminação, ele defrontou-se com Maya Papyam, deus do reino dos desejos, capaz de alimentar as fantasias de poder de qualquer mortal. 

A todo custo, Maya queria tirar Budha de seu objetivo. Mas Budha já conhecia bem esse caminho. Seu pai já tentara afatá-lo da realidade através da fantasia de um mundo onde todos eram etrnamente belos e a velhice e a morte não tinham lugar. Foi para fugir desta ficção que Budha tentou rasgar a cortina de ilusões que habita em nós na medida em que nos lançamos com avidez no mundo das aparências e do poder.

Meditando à beira de um lago, o príncipe Gautama viu diante de si o reflexo da própria imagem. Defrontado com Mara, a potência do desejo que assumia as feições de Budha e lhe oferecia poder e riqueza sem fim, Budha, reunindo o resto de suas forças, exclama olhando para a própria imagem que tudo aquilo era ilusão, derrotando Maya Papyam, o poderoso deus dos enganos.

Pensando em Budha e Narciso como duas tendências de nossas mentes, não há como não reconhecer nestas forças um desafio permanente. Ou optamos por Narciso, e nos transformamos em seres iludidos com o poder que ignora as consequências de seus gestos e desconhece o amor e a delicadeza frente ao outro, ou aprendemos com Budha o mistério da ilusão do próprio eu e confrontamos Mara para, uma vez mais, tentarmos renovar os nossos objetivos de estar neste mundo.


POST-SCRIPTUM:

Boa sorte a cada um e a todos em sua busca pela iluminação.

quinta-feira, 20 de março de 2014

LOLLAPALOOZA E LOBÃO



[Editado do capítulo 4 ('Por que o rock continua errando') do livro MANIFESTO DO NADA NA TERRA DO NUNCA, escrito por Lobão e publicado pela Editora Nova Fronteira]


Por que será que aqui no Brasil nós temos tanta dificuldade em lidar com esse tal de roquenrou?

Ao invés de haver uma infraestrutura no nosso dia a dia - que permita a esse tipo de cultura existir de forma normal, prosperar e, assim, por merecimento e vontade do público e do empresário, ingressar pela porta da frente dos festivais -, acabam por enfiar os artistas brasileiros em palcos coadjuvantes, em horários pouco significativos, com visibilidade, som, luz, tudo sensivelmente inferior.

Agora, se você tentar modificar a situação, como aconteceu comigo no bisonho "episódio Lollapalooza", você se fode de verde e amarelo.

Contarei a história como se passou:
Fui contratado pela produção do festival Lollapalooza para tocar em sua primeira edição brasileira, fato esse que muito me entusiasmou por ser um festival mais para o alternativo, sem a grandiloquência de um 'Rock in Rio'.

Já havia uma promessa contratual escrita e, às vésperas do evento, a inevitável assinatura do contrato definitivo. Foi quando me deu um estalo e cismei em telefonar para o produtor nacional do festival para saber de mais detalhes. Aí a coisa encrencou. 

O nosso estimado produtor me esclareceu efusivamente que eu iria tocar no horário "filé" das bandas nacionais, o que muito me deixou espantado, pois, de cara, já revelava um apartheid entre as bandas nacionais  e as internacionais. Algo estranhíssimo para aquele festival de cunho alternativo, cuja tradição era de incrementar a integração das bandas, e o que estava me sendo informado era justamente o contrário. 

Eu exclamei assustado: "Mas o que é isso? Assim é muito barra pessada! Apartar os artistas brasileiros do resto do festival é no mínimo esculhambante!"

Ele tentou me explicar que o festival tinha suas regras quanto à escolha do line-up, que havia sido uma exigência "dos gringos" e que não me preocupasse com o horário, pois era um festival de características diurnas, e eu voltei à carga alegando saber disso tudo, mas as atrações "filés" começariam a tocar ao cair da tarde, quando o sistema de luz faz a diferença, e eu só tocaria se fosse incluído para tocar pelo menos no fim da tarde, mas às duas da tarde, de jeito nenhum.

Ele tentou me alertar mais uma vez sobre o fato de "os gringos serem durões" e terem regras muito restritas em relação aos artistas brasileiros e que não havia essa opção: ou eu tocava às duas da tarde ou nada feito.

Nada feito. qual seria o problema em integrar todos os artistas de todos os lugares? Por que criar essa situação de afastamento de grupos?

Apesar de tudo isso, sou um otimista. Não vejo motivo real para nos colocarmos tão vacilantes e inseguros sempre que nos metemos em relações internacionais, exceto por termos entranhada essa mentalidade insular que nos aparta do mundo exterior. Um pouco de petulância não faz mal a ninguém.


POST-SCRIPTUM: 




Não sei como será o festival este ano, que ocorrerá nos dias 5 e 6 de abril, mas espero sinceramente que tenham abolido o apartheid entre as bandas nacionais e gringas.   

 

DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!





[Foto de Napoleão F. da Silva]



Entrevista com o líder do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, ao jornal O Globo. Estamos todos no inferno. Não há solução, pois não conhecemos nem o problema.




O GLOBO: Você é do PCC?


- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível… vocês nunca me olharam durante décadas… E antigamente era mole resolver o problema da miséria… O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias… A solução é que nunca vinha… Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas… Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo… Nós somos o início tardio de vossa consciência social… Viu? Sou culto… Leio Dante na prisão…


O GLOBO: – Mas… a solução seria…


- Solução? Não há mais solução, cara… A própria idéia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC…) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios…). E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução.


O GLOBO: – Você não têm medo de morrer?


- Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar… mas eu posso mandar matar vocês lá fora…. Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba… Estamos no centro do Insolúvel, mesmo… Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração… A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala… Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha… Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante… mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem.Vocês não ouvem as gravações feitas “com autorização da Justiça”? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.


O GLOBO: – O que mudou nas periferias?


- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório… Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no “microondas”… ha, ha… Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.


O GLOBO: – Mas o que devemos fazer?


- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas… O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, “Sobre a guerra”. Não há perspectiva de êxito… Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas… A gente já tem até foguete anti-tanques… Se bobear, vão rolar uns Stingers aí… Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas… Aliás, a gente acaba arranjando também “umazinha”, daquelas bombas sujas mesmo. Já pensou? Ipanema radioativa?


O GLOBO: – Mas… não haveria solução?


- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a “normalidade”. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco…na boa… na moral… Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês… não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: “Lasciate ogna speranza voi cheentrate!” Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno.

REFERÊNCIAS (Wikipédia):

Inferno é a primeira parte da "Divina Comédia" de Dante Alighieri, sendo as outras duas o Purgatório e o Paraíso. Está dividido em trinta e quatro cantos (uma divisão de longas poesias), possuindo um canto a mais que as outras duas partes, que serve de introdução ao poema. A viagem de Dante é uma alegoria através do que é essencialmente o conceito medieval de Inferno, guiada pelo poeta romano Virgílio. No poema, o inferno é descrito com nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra. Foi escrito no início do século XIV.

O Portal do Inferno não tem portas ou cadeados, somente um arco com um aviso que adverte: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar. A alma só tem livre-arbítrio enquanto viva, portanto, viva se decide pelo céu ou pelo inferno. Depois de morta, perde a capacidade de raciocinar e tomar decisões.



POST-SCRIPTUM:


A entrevista é meio antiga, do tempo do Lula, mas a realidade é a mesma até hoje. E como é!


O que fazer? Chorar???


VOTE NULO! ESTAMOS TODOS NO INFERNO!

FUNDAMENTALISMO



[Texto de autoria de Leonardo Boff]

Além de rejeitar decididamente o terrorismo e o fundamentalismo devemos procurar entender o porquê deste fenômeno. Já abordei tal tema num livro, "Fundamentalismo, Terrorismo, Religião e Paz: desafio do século XXI" (Ed. Vozes, 2009). Aí refiro, entre outras causas, o tipo de globalização que predominou desde o seu início, uma globalização fundamentalmente da economia, dos mercados e das finanças. Edgar Morin a chama de "a idade de ferro da globalização".

Não se seguiu, como a realidade pedia, uma globalização política (uma governança global dos povos), uma globalização ética e educacional. Explico-me: com a globalização inauguramos uma nova fase da história do Planeta vivo e da própria humanidade. 

Estamos deixando para trás os limites restritos das culturas regionais com suas identidades e a figura do estado-nação para entrarmos cada vez mais no processo de uma história coletiva, da espécie humana, com um destino comum, ligado ao destino da vida e, de certa forma, da própria Terra. Os povos se puseram em movimento, as comunicações universalizaram os contatos e multidões, por distintas razões começaram a circular pelo mundo afora.

A transição do local para o global não foi preparada, pois o que vigorava era o confronto entre duas formas de organizar a sociedade: o socialismo estatal da União Soviética e o capitalismo liberal do Ocidente. Todos deviam alinhar-se a uma destas alternativas.

Com o desmonte da União Soviética, não surgiu um mundo multipolar, mas o predomínio dos EUA como a maior potência econômico-militar que começou a exercer um poder imperial, fazendo com que todos se alinhassem a seus interesses globais.

Mais que globalização em sentido amplo, ocorreu uma espécie de ocidentalização do mundo e, em sua forma pejorativa, uma "hamburguerização". Funcionou como um rolo compressor, passando por cima de respeitáveis tradições culturais. Isso foi agravado pela típica arrogância do Ocidente de se sentir portador da melhor cultura, da melhor ciência, da melhor religião, da melhor forma de produzir e de governar.

Essa uniformização global gerou forte resistência, amargura e raiva em muitos povos. Assistiam a erosão de sua identidade e de seus costumes. Em situações assim surgem, normalmente, forças identitárias que se alinham a setores conservadores das religiões, guardiães naturais das tradições. Daí se origina o fundamentalismo que se caracteriza por conferir valor absoluto ao seu ponto de vista. 

Quem afirma de forma absoluta sua identidade, está condenado a ser intolerante para com os diferentes, a desprezá-los e, no limite, a eliminá-los.


POST-SCRIPTUM:


Concordo plenamente com o pensador Leonardo Boff: toda forma de intolerância deve ser combatida, mas devemos ter em mente que somente através da educação este câncer social poderá ser um dia erradicado. 



quarta-feira, 19 de março de 2014

30 ANOS DE SAMBÓDROMO



[Publicado originalmente em Liesa News nº 13]


Inaugurado em 2 de março de 1984, o Sambódromo é considerado o Templo do Samba. Localizado entre a Praça Onze e o Catumbi, foi construído pelo então governador Leonel Brizola justamente onde existiu a Pequena África do Rio de Janeiro, concentrando descendentes de africanos. Ali aconteceram as primeiras rodas de samba da cidade.

O empreendimento pôs fim ao monta-desmonta de arquibancadas de madeira, que acompanharam o crescimento do espetáculo desde os anos 1950, passando pela Avenida Rio Branco, Presidente Vargas, Presidente Antônio Carlos e a própria Marquês de Sapucaí, no Centro.

Sua arquitetura é uma criação do renomado Oscar Niemeyer, que só viu a obra concluída conforme o projeto original em 2012, quando foram construídos quatro novos módulos de arquibancadas no espaço anteriormente ocupado por um gigantesco bloco de camarotes.

O Sambódromo serviu de modelo para vários outros construídos no Brasil. Além de abrigar o Melhor Espetáculo da Terra também será usado para a prática de algumas modalidades esportivas nas Olimpíadas de 2016. Coincidentemente, seu trigésimo aniversário foi festejado no dia de abertura dos desfiles do Grupo Especial.


POST-SCRIPTUM:




Tá tudo muito bom, mas eu só não gostei do desfile deste ano porque o meu Salgueiro perdeu o campeonato para a Unidos da Tijuca por uma diferença de um décimo. Sacanagem! 


MICHEL FOUCAULT



[Adaptado de uma reportagem publicada no caderno 'Prosa & Verso' do jornal O GLOBO, em 11.01.2014]


No ano em que se completam três décadas da morte do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) presto aqui minha homenagem aquele que foi o pensador libertário das marginalidades sociais e das minorias culturais, raciais e sexuais.

Foucault expunha uma visão da cultura e da História que não pretendia explicar o presente pelo passado. Preferia investigar os discursos que condicionam as formas de ver e julgar, e analisar a maneira pela qual a cultura contemporânea determina as condições de possibilidade do novo. Construiu assim sua arqueologia da cultura ocidental.


POST-SCRIPTUM:


A seguir um trecho de declarações feitas pelo filósofo, em entrevista concedida ao "Jornal da Tarde", numa visita ao Brasil poucos dias depois do assassinato do jornalista Vladimir Herzog por agentes da ditadura militar em 1975:

"A dialética mestre-escravo, segundo Hegel, é o mecanismo pelo qual o poder do mestre se esvazia pelo fato mesmo de seu exercício. A certa altura ele se encontra na dependência do escravo, não tendo mais poder porque cessou de exercê-lo. 

Quero mostrar o oposto: que o poder se reforça pelo seu próprio exercício - não passa sub-repticiamente para o outro lado. Desde 1831, a Europa não parou de pensar que a derrubada do capitalismo era iminente. Isso muito antes de Marx. E ele está aí. Não digo que ele nunca será desenraizado. Mas que o custo de sua derrubada não é o que imaginamos.

Se essas lutas são feitas em nome de alguma essência do homem, tal como ela foi construída no pensamento do século XVIII, eu diria que essas lutas estão perdidas. Porque elas serão conduzidas em nome do homem abstrato, do homem 'normal', do homem 'de boa saúde', que é o precipitado de uma série de poderes.

Agora, se quisermos fazer a crítica desses poderes, não se deve efetuá-la em nome de uma ideia do homem construída a partir desses poderes. Quando o marxismo vulgar fala do homem completo, do homem reconciliado com ele mesmo, de que se trata? Do homem 'normal', do homem 'equilibrado'. Quando se formou a imagem desse homem? A partir de um saber e de um poder psiquiátrico, médico, um poder 'normalizador'. 

Fazer crítica política em nome desse humanismo significa reintroduzir na arma do combate aquilo contra o qual combatemos."



HOMENAGEM A ELIS REGINA




Vista por mais de 70 mil espectadores em pouco mais de 3 meses em cartaz, superprodução recria a trajetória de Elis Regina, uma das maiores cantoras da história da música popular brasileira.

O musical esteve em cartaz  no Rio de Janeiro e agora continua sua trajetória de sucesso em São Paulo.


POST-SCRIPTUM:


Fica aqui registrada minha homenagem ao mito nessa interpretação incomparável de "Como Nossos Pais" da autoria de Belchior.





Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais


terça-feira, 18 de março de 2014

OS DOIS LADOS DAS GRADES



[Editado a partir de uma reportagem de Karine Rodrigues, publicada no jornal O GLOBO]


Nos idos de 1850, quem ingressava na Casa de Correção da Corte, primeira unidade prisional do Brasil, depois transformada no já extinto Complexo Penitenciário Frei Caneca, no centro do Rio, lá permanecia por não mais de uma década. Nenhuma relação com os crimes cometidos. Tratava-se, na verdade, do tempo que o corpo suportava condições tão aviltantes. O borracheiro Elson de Jesus Pereira, porém, não chegou a tanto, embora tenha sido detido um século e meio depois. 

Levado a penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, sob acusação de ter receptado quatro pneus roubados, ele foi decapitado poucos dias depois, em outubro do ano passado, durante uma das inúmeras rebeliões ocorridas naquela unidade prisional.

Em Pedrinhas, a separação de presos conforme a natureza do delito cometido é letra morta. Situação que, segundo levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), concluído em fevereiro do ano passado, é comum a 1.598 unidades prisionais do país, apesar de ser uma norma da Constituição de 1988.


POST-SCRIPTUM:

Nas palavras do filósofo Foucault: "As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (...) a prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos." 



domingo, 16 de março de 2014

A COPA DO CU DO MUNDO



[Editado a partir de um artigo publicado no jornal O GLOBO em 01.03.2014 da autoria de José Miguel Wisnik]


Numa sequência ao mesmo tempo divertida e contundente, na base do programa de auditório, joga-se com a iminência da realização, no Brasil, desse maior espetáculo da Terra, que é chamado nada mais nada menos do que a Copa do Cu do Mundo.

Todo o sentido crítico que se possa, toda a virada pelo avesso do padrão Fifa, exibido pela culatra, toda a remissão às misérias, às derrisões e aos terrores da doença brasileira, tudo está aí, nesse nome.

Mas também, no reconhecimento disso, a capacidade de afirmar a potência da cultura (com trocadilho), de rir das máscaras canastronas, de exercer o apetite de viver e, por incrível que pudesse ser e é, de marcar um lugar original no planeta. É claro que isso só pode ser afirmado em vista da grandeza artística do todo, e no modo como o espetáculo vai fundo na experiência social e vital do país.

A discutida camiseta da Adidas para a Copa, onde se estampa "I love Brazil" na forma de um coração-bunda, é uma versão limitada, mercadológica pitoresca e não assumida do fato de que se olha difusamente a Copa do Brasil como uma espécie de Copa do Cu do Mundo.

Não o quarto mundo, não o cu do mundo, mas a quarta dimensão do cu do mundo.

POST-SCRIPTUM:

"O futuro do Brasil é tão grandioso que não há abismo em que caiba." - Agostinho da Silva

Será mesmo? Espero sinceramente que sim, senão corremos o sério risco de atolar num esgoto metafórico...



sábado, 15 de março de 2014

A CONTRACULTURA E O CINEMA AMERICANO



[Texto de autoria de PETER BISKIND, autor do livro 'COMO A GERAÇÃO SEXO-DROGAS-E-ROCK'N'ROLL SALVOU HOLLYWOOD']

Em meados dos anos 1960, os estúdios americanos não estavam indo bem. Os filmes tinham um público cada vez menor. Simplesmente não conseguiam se comunicar com a juventude daquela época. Afinal de contas, eles eram produzidos por pessoas de 60 anos ou mais que não compreendiam o comportamento da rapaziada. A contracultura era algo que os horrorizava.




Pessoas bêbadas, drogadas e violentas como Dennis Hopper, na época com 20 e poucos anos, os assustavam. E foi justamente um filme dirigido por Hopper, 'Sem Destino' (Easy Rider), que deu novo fôlego ao cinema ianque. De repente, essa geração de rebeldes começou a ingressar nas escolas de cinema e a fazer filmes. O público adorava. Os estúdios não tiveram outra opção a não ser abraça-los.


Gente como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Warren Beatty, Peter Bogdanovich e Robert Altman tinha uma atitude diferente da dos velhos produtores. Não queriam fazer filmes óbvios, se recusavam a filmar em estúdios, estavam cansados das composições perfeitas, iluminação e artificialidade. Mesmo os atores dessa época eram diferentes. Saíam de cena os anglo-saxões perfeitos, entravam os atores étnicos como Robert De Niro, Al Pacino e Dustin Hoffman.


As drogas foram uma parte importante dessa cultura. Enquanto todos os pais tomavam álcool, a juventude fumava maconha. Os cineastas diziam que a erva aumentava sua criatividade e sensibilidade artística. Depois de um tempo, a cocaína virou a droga principal em Hollywood. Ela dava energia, podiam filmar a noite toda. Foi o começo do declínio dessa geração. Na década de 80, quando finalmente perceberam o quanto a droga era perigosa, todo mundo já estava usando. Teve um efeito terrível entre os cineastas. 




Quanto mais essa geração dava certo mais Hollywood lucrava. Os lançamentos eram cada vez maiores. Foi aí que outros dois expoentes dessa geração, George Lucas e Steven Spielberg, começaram a liderar uma contra-revolução. 'Tubarão' e 'Star Wars' fizeram tanto dinheiro, tiveram tanto público, licenciaram tantos produtos, que os estúdios não quiseram mais fazer filmes contraculturais. Tinha início a era dos blockbusters, com investimentos astronômicos, muita propaganda e efeitos especiais.

 

O tipo de filme que está hoje nos cinemas é resultado das portas que a contracultura abriu em Hollywood. Os grandes diretores do cinema mataram os filmes autorais. Se hoje você vai a um multiplex, põe o óculos 3-D e assiste a duas horas e quarenta e cinco minutos de efeitos especiais estonteantes, é porque lá, nos anos 60, uns hippies tiveram a coragem de tirar os filmes das mãos dos produtores e bater de frente com os estúdios.

Só que Hollywood ganhou a guerra.  




POST-SCRIPTUM:

É isso aí, bicho!