domingo, 25 de maio de 2014

A DECADÊNCIA DA CORRUPÇÃO


[Texto de Millôr Fernandes publicado originalmente em O PASQUIM nº 281]


Pode ser que esta discussão não tenha acontecido, ou tenha, pode ser que eu seja especialista em leis, pode ser que não seja, pode ser que vocês acreditem no que escrevo, pode ser que não. Tudo pode ser e pode não ser ao mesmo tempo. Hamlet perdeu seu tempo e seu latim.

O fato é que meus amigos - que chamaremos de Paulo Pai e Paulo Filho, ou Paulo Sênior e Paulo Junior, para os que preferem anglicismos, Paulo I e Paulo II, para os que ainda suspiram pela monarquia, - tiveram uma discussão.

Paulo Filho estava fazendo 20 anos, uma idade absolutamente provecta para quem, cinco anos antes tinha apenas 15 e está portanto, 1/3 mais velho, e Paulo Pai tocou no delicado assunto de escolha de uma carreira.

Não se tratava mais "do que é que você vai ser agora que já está demasiado crescido" (Paulo Filho tem 1 metro e 83). Pois embora Paulo Pai estime muito o filho, não é dado aos pais, mesmo os mais estimativos, sustentar os estimados filhos até a morte - comumente morte deles próprios, pais, porém, algumas vezes, dos referidos filhos, pois ninguém é tão velho que não possa viver mais um ano nem tão jovem que não possa morrer já.

Pois, então, dialogaram:
- Bem, meu pai - disse Paulo Filho - creio que, ao escolher uma profissão, devo ser prático. Tenho que pensar em algo que, acima de tudo, dê dinheiro.

- Acho que não, meu filho - disse Paulo Pai - o fundamental é o espírito. Você deveria ser um artista.

- Artista, pai? Pouco rendoso. Além do que, e a vocação?

- Bem, se você não quer ser um artista, então seja um pesquisador social, um professor, um filantropo, qualquer atividade que se dirija, enfim, ao bem público.

Paulo Filho pensou que o pai estava ironizando e mostrou-o em palavras:

- Está ironizando, meu pai? Eu estou falando sério.

Paulo Pai, não compreendendo como o filho não via a seriedade de suas propostas, parou de sugerir. Paulo Filho, atencioso, analisou minuciosamente as propostas do pai e mostrou-lhe que eram todas impraticáveis.

Paulo Pai que, como todos os pais, é altamente sensível às razões dos filhos, concordou. E a coisa estava nesse impasse quando Paulo Filho teve uma brilhante ideia. Por que ele não poderia se dedicar à prática do crime, que é uma profissão, afinal, livre, rendosa e aventurosa?

Paulo Pai estremeceu diante da brilhante argumentação do filho, concordou que a proposta, partida de um jovem de alta classe média era, pelo menos, original. E concordou. Nesse instante é que me procuraram, não sei se pela minha sabedoria ou se pelos meus livros de consulta, outra forma da mesma coisa.

A primeira dúvida era, evidentemente, que tipo de especialidade, dentro do vasto ramo Crime. Paulo Filho deveria seguir: o delito leve, atos não distantes da boa conduta social, coisas como dolo, peculato e simples picaretagem ou deveria entrar mesmo no crime mais amplo, incluindo assalto, violência e morte?

Paulo Filho imediatamente colocou a sua posição: "Quero logo deixar bem claro que não desejo dedicar minha vida a nada que não seja intenso e absorvente. Se vou abraçar o crime não pretendo ficar no delito leve, que qualquer leigo pode praticar e que pode ser até cuspir na calçada e chegar atrasado no emprego. Não, se vou me dedicar ao crime, quero me dedicar ao crime. E crime mesmo, para mim, é assassinato."

- Ótimo - disse eu - isso torna tudo mais fácil. Temos definição. Mas, falar em definição, você sabe o que é Assassinato? Assassinato que em inglês se chama 'murder', no latim 'homicidium'...

- Não poderíamos passar por cima da erudição, seu Millôr? - me pediu Paulo Filho. Passei por cima e concluí: "... e consiste em tirar a vida de um ser humano, ilegal e intencionalmente. Passo a explicar ponto por ponto."

- Não precisa - disse Paulo Filho - explique apenas "ilegal e intencionalmente".

Peguei meus códigos mas, ao fim de meia hora de explicações, ambos os Paulos mostravam-se visivelmente cansados e desiludidos: "Realmente não temos condições econômicas para enfrentar esse tipo de atividade."

- Acho que vocês tem toda razão - concordei. - O assassinato é uma atividade extremamente mais complicada do que parece à primeira vista, e, se Paulo Filho vai ingressar nela, tem que estar técnica e teoricamente preparado, porque o menor descuido pode levá-lo a praticar uma morte não apenas desculpável, mas mesmo justificável, chegando até, em alguns dos casos, a ser socialmente desejável.

- O senhor está se referindo a atividade tipo Esquadrão da Morte?

- Não, estou me referindo a Eutanásia. Por que não tenta o roubo?

- É uma boa ideia - disse Paulo Filho, não porque a ideia tivesse partido de mim mas porque, evidentemente, tudo conduzia a isso. - Como é que se define?

- Roubo - disse eu - é o ato de se apropriar de qualquer bem material alheio, com emprego de força ou violência, com invasão de domicílio, estabelecimento comercial, templo...

Parei, respirei e disse a Paulo Filho.

- Não quero desanimá-lo, mas só nesse código, o roubo tem 37 páginas de definição. Tem também, importantíssimo, um Mens Rea.

- O que é isso?

- Uma coisa parecida com ilegal e intencionalmente - chutei - Quer que leia? São só seis páginas.

- Não, não, Millôr, deixa, - me respondeu Paulo Filho decepcionado - é tudo muito complicado. Acho que meu pai tem razão. Vou ser um homem de bem.


POST-SCRIPTUM:


O crime não compensa mesmo hoje em dia?




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