terça-feira, 28 de janeiro de 2014

FENDA NA RAZÃO



Dentre os inúmeros objetivos pretendidos originalmente por este 'blog' sempre esteve a divulgação da cultura em todos (ou pelo menos quase todos...) os seus matizes.   

E um dos mais importantes é a discussão da filosofia, tanto de per se quanto nas manifestações literárias da atualidade pós-moderna a respeito do assunto.

É, portanto, consciente de que não poderia dizer de melhor forma que humildemente passo a palavra ao poeta Alberto Pucheu em sua análise do livro "Um Sábio Não Tem Idéia", da autoria de François Julien e publicado pela Ed. Martins Fontes:

[TEXTO EDITADO DE UMA CRÍTICA PUBLICADA NO CADERNO LITERÁRIO DO JORNAL 'O GLOBO'] 




Já em seu princípio, na Grécia, a filosofia se esforçou por estabelecer uma diferença específica em relação às possibilidades do pensamento até então.

As quatro alteridades fundamentais da filosofia, supostamente estabelecidas: a sabedoria, a poesia, a sofística e a política.

Nada disso é tão simples. Aristóteles chamava boa parte dos pensadores anteriores a ele de filósofos, incluindo até mesmo Hesíodo. Protágoras, no diálogo homônimo escrito por Platão, relaciona o próprio Hesíodo não só à poesia como também à sofística. Se lembrarmos que, posteriormente, Diógenes Laércio afirmou que "sofista" era outro nome para "sábio", "poeta" e "filósofo", a confusão estaria completa. 



Ou melhor: no momento do frescor da filosofia, a encruzilhada tornava as efervescentes experiências do pensamento indiscerníveis.

Além disso, se Platão escreveu sobre o poeta, sobre o sofista e sobre o político, por que não teria elaborado o diálogo sobre o filósofo, conforme o anunciado?

A não ser que, falando dessas supostas alteridades, esteja o tempo todo pensando a filosofia e a impossibilidade de sua apreensão isolada.

 


Esses termos, com o tempo, tornaram-se gastos e perderam complexidades importantes. Isso ocorreu pela insistência de quase toda a tradição ocidental em defini-los uns contra os outros, compartimentando o que, mesmo em Platão, era de definição controversa.

Eis o grande mérito do filósofo e sinólogo francês François Julien: mostrar um fundo de experiência e de pensamento que, por não ter vingado em nossa História, a filosofia enquanto metafísica não pôde conceber.

Um dos preconceitos contra os quais o livro se lança é o de que a sabedoria teria sido superada pela filosofia, como se sua anterioridade cronológica fosse imaturidade de pensamento.



O que ele mostra é justamente a radicalidade dessa experiência na própria condição de possibilidade da filosofia e que foi apagada pelo privilégio da razão européia. Julien retira a sabedoria da perspectiva mística e exótica, afastando-a dos lugares-comuns que as apressadas tentativas de aproximação entre o Ocidente e o Oriente suscitam.

Abrindo uma fenda na razão, transforma-a no que seria sua própria condição de possibilidade, saindo do jogo contraditório entre razão e seu oposto. Trata-se de demarcar uma lógica da sabedoria.



François Julien mantém um diálogo vivo e tenso entre a filosofia e o pensamento chinês.

"Um Sábio Não Tem Idéia", por sua originalidade e força, tem a difícil capacidade de sulcar caminhos impensados e propulsores.




POST-SCRIPTUM:

Um livro extraordinário e indispensável para quem quer ampliar seus horizontes, que busca resgatar um tipo de experiência e de pensamento não absorvidos pela filosofia convencional do Ocidente. 

E que as fendas na razão um dia recuperem a verdadeira Sabedoria!

 

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