[Artigo de autoria do antropólogo ROBERTO DaMATTA, publicado na coluna ‘OPINIÃO’ do jornal O GLOBO em 22 de dezembro de 2010]
Em 1968, bastou um humilde requerimento para a Universidade de Harvard me enviar pelo correio o diploma de Master of Arts em Antropologia. Dois anos depois – após escrever uma tese – recebi, com a mesma ausência de pompa, o título de doutor em Filosofia (o tal Ph.D.), que nos anos 70 causava um furor invejoso no Brasil – este país das papeladas e dos papelões. Das carteiras de identidade, alvarás, cartas de motorista, diplomas, certificados, títulos, atestados e certidões que, num sentido preciso e ibero-kafkiano, revelam que a papelada – a carteira e o diploma – conta mais que nós.
Essa é a lógica dos decretos que aumentam absurdamente o salário dos parlamentares. Eles revelam que a lei não tem nada a ver com a economia moral da democracia. A que condiz com uma concepção do serviço público como expressão de uma aliança positiva entre Estado e sociedade. Pois, no Brasil, é a sociedade que sustenta um Estado absurdamente autorreferido e perdulário. Esse é, sem dúvida, o traço distintivo de um presidente que sai registrando a obra em cartório!
Quando recebi o canudo, falei sobre essa informalidade com colegas americanos. A resposta foi dura para os meus ouvidos de brasileirinho socializado para ser um aficionado de títulos: o que vale não é o diploma, mas a obra. Uma outra experiência notável foi ter que reconhecer a firma do presidente da Universidade de Harvard no consulado brasileiro. Sem tal aval, que meus colegas harvardianos achavam absurdo, o diploma não poderia ser levado em conta na universidade que me havia licenciado para a especialização na Harvard. Eis o nosso paradoxo ou ardil 22. Sem um papel você não pode ter o papel que precisa e sem esse papel, você não existe. A vida começa com um papel e você não nasce de uma trepada, mas de uma ida a um cartório.
Pior que isso só a diplomação de Dilma Rousseff, eleita pelo povo a primeira mulher a ocupar a Presidência do Brasil. Pela mesma lógica o voto te fez presidente, mas sem um alvará você não pode exercer o poder que lhe foi dado pelo povo. Essa é uma das provas mais cabais do nosso perverso amor às papeladas que engendram papelões. O povo elege, mas, sem o alvará do Supremo, o eleito não é nada.
Vejam o absurdo: depois de uma eleição nacional, alguém tem que ungir os eleitos com os santos óleos da burocracia, tal como os papas faziam com os imperadores na antiguidade. E depois dizem que eu idealizo e invento um detestável 'Brasil tradicional' na minha modesta e ignorada obra antropoliterária.
Faço questão de notar, porém, que pouco adianta denunciar esse gosto pela papelada se o drama nacional continua sendo gerenciado por esse importante e pouco discutido teatro de burocracias e formalidades. Pois, entre nós, o documento vale mais do que a vida e a história. O alvará que confirma, também libera os candidatos corruptos, condenados pela ‘Lei Ficha Limpa’, na base de detalhes processuais. A gramática, como sempre, elimina a verdade do discurso. Por isso gostamos tanto dos diplomas que dizem que somos o que não somos.
Entrementes, porém, já sucede um entretanto: Lula – que vai saindo como nunca nenhum presidente deixou o cargo neste país – manda registrar em cartório os seus feitos como presidente, exagerando aqui e ali nos eventos e deixando de lado o mais importante: o fato de ter sido o primeiro mandatário de esquerda eleito no Brasil; o fato de ter sido o primeiro presidente de um partido ideológico mas que governou como um coronel político tradicional, aliando-se sem pejo ou dúvida aos outros coronéis do nosso sistema de poder. Que o seu partido, dito o mais moderno do Brasil, fez um mensalão e ama os cartórios luso-brasileiros onde tudo cheira a mofo e não há movimento, mas somente papelada.
Entrementes, porém, já sucede um entretanto: Lula – que vai saindo como nunca nenhum presidente deixou o cargo neste país – manda registrar em cartório os seus feitos como presidente, exagerando aqui e ali nos eventos e deixando de lado o mais importante: o fato de ter sido o primeiro mandatário de esquerda eleito no Brasil; o fato de ter sido o primeiro presidente de um partido ideológico mas que governou como um coronel político tradicional, aliando-se sem pejo ou dúvida aos outros coronéis do nosso sistema de poder. Que o seu partido, dito o mais moderno do Brasil, fez um mensalão e ama os cartórios luso-brasileiros onde tudo cheira a mofo e não há movimento, mas somente papelada.
O salvador dos pobres consolida o capitalismo financeiro; o autêntico operário – aquele que seria a voz do povo destituído – foi o mais mendaz mandatário da história de nosso país. O registro em cartório prova como somos mais moldura do que quadro; como gostamos mais do vestido do que da dama; como preferimos a forma ao conteúdo. E como pensamos que a verdade é mesmo feita de papeladas e registros com firma reconhecida.
Alguns podem achar que o assunto é datado e que a sucessão presidencial é notícia velha. Mas o ilustre professor, na verdade, vai à raiz dos problemas que tornam nosso país um eterno pretendente ao desenvolvimento real e concreto, o que garante a atualidade deste artigo, na medida em que as situações descritas se repetem sob outras máscaras e em contextos apenas aparentemente diversos.
Além do que, houve outro motivo que me fez lembrar que havia lido e guardado este artigo e que me motivou a postá-lo agora: ultimamente tenho tido repetidos problemas com a odiosa burocracia oficial, tanto na esfera administrativa quanto jurídica, o que é, para dizer o mínimo, tremendamente frustrante e não menos irritante. Quando o direito mais elementar do cidadão é considerado de menor monta ao se defrontar com as exigências e conveniências do poder (supostamente) público, alguma coisa está muito errada...
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