domingo, 31 de maio de 2009

NADA NASCE DO NADA?





Gostaria de discutir o conceito de nada subentendido em afirmações do tipo "nada nasce do nada"; podemos definir com exatidão o conceito de "nada"? Em princípio, a intuição mais imediata que poderíamos ter a respeito do mesmo seria pensar em termos de não-existência em oposição à existência; ou seja, o “nada” seria então um “não-conceito”. Mas, se ele é pensável de alguma forma, deveríamos ser capazes de conceituá-lo; ou não?

É isso que, com algum esforço de imaginação, pretendemos tentar aqui, tomando de empréstimo algumas das idéias derivadas das meditações de Heidegger, Nietzsche e Wittgenstein, por exemplo, bem como da filosofia do Existencialismo, da Mecânica Quântica na Física, da Teoria dos Conjuntos e da Álgebra Booleana na Matemática, do Taoísmo chinês e das intuições poéticas de Hesíodo, Heráclito e Parmênides.

Primeiramente vamos imaginar que, mesmo enquanto algo que “não é”, o Nada possa se pensado como algo que “é”, na medida em que ele é pronunciável, ou seja, existe a possibilidade de se dizer alguma coisa a seu respeito; por mais absurdo que pareça, e contra toda lógica convencional, poderíamos propor-lhe uma “identidade”, a título de exercício de abstração, que pudesse ser definida?

Tendo em vista esta proposta, o Nada, enquanto “inexistente”, poderia ser “classificado”? E como fazê-lo? Seria lícito começar nos indagando de que maneira a não-existência se manifestaria enquanto idéia, ou como produto do pensamento, dentro dos limites que nossa imaginação permite conceber o Nada enquanto algo que “é”, ainda que contra toda intuição que nos leva a afirmar que ele “não é”.

Neste contexto, portanto, caberia fazermos as seguintes perguntas:

Seria o Nada um componente extrafísico da realidade, algo como a exdrúxula "matéria escura" do Universo (à qual os físicos atribuem inclusive "gravidade negativa"), concomitante à existência empírica, porém, para quase todos os efeitos, virtualmente indetectável?

Ou seria algo como um estado quântico da matéria, uma alternativa à existência material?

Seria o Nada passível de constituir-se como uma "antirealidade" física (em analogia à antimatéria) localizada numa dimensão à parte da existência convencional?

Ou seria tão somente a representação de uma idéia sem substância, mera convenção linguística, e, portanto apenas simbólico da ausência total?

Seria o Nada a "essência última" da realidade, sendo todo o resto uma "mera ilusão"?

Ou seria ele próprio apenas um produto de nossa imaginação delirante, não tendo qualquer sentido prático ou teórico?

Essas perguntas abrem um leque de possibilidades filosóficas. Uma resposta estritamente “racional” seria a de que "tanto faz": o Nada, por definição, não existe, como já observamos.

Entretanto, "alguma coisa" existe em contrapartida a “coisa nenhuma” e está em perpétua tensão conceitual com a não-existência pela via da relação de oposição bem concreta entre a vida e a morte, por exemplo; portanto, algum Nada participa da existência humana em seu aspecto tanto psíquico quanto físico, na medida em que a morte é um evento observável e, até certo ponto, quantificável enquanto parte integrante e indissociável do fenômeno da vida; ele tem sem dúvida um sentido simbólico e gramatical, mas tem também um sentido existencial e trágico, o que me permite tratá-lo – o Nada – como "alguma coisa" atualizável, pelo menos em teoria.

O próximo passo seria admitir que o Nada possuísse uma "existência" bizarra e peculiar, participando efetiva e simultaneamente na elaboração de minhas definições de atual e potencial, real e imaginário, concreto e abstrato, adquirindo, assim, características paradoxais tanto de absoluto quanto de relativo; um nada "impuro", híbrido, tautológico enquanto gerador de infinitos positivos e negativos auto-aniquilantes e ainda assim atualizáveis, imóvel enquanto condição e "ponto de partida" de todo movimento, simultaneamente transcendente e imanente a si próprio, capaz de desdobrar-se e projetar-se em emanações contínuas, contaminadas por um movimento de negação da negação (e portanto de superação da superação); circular e perpétuo, simultaneamente ascendente e descendente, centrífugo e centrípeto, acumulativo e dissipativo, desviante e autoreferente; imbuído, portanto, da tendência a vir a ser tudo, ou melhor, qualquer coisa.

Teríamos então, em nossas mãos, expressando-nos poeticamente, o Kaos descrito na "Teogonia" de Hesíodo, mas inserido em um equilíbrio dinâmico e bipolar, melhor representado, talvez, pelo símbolo taoísta da dualidade yin/yang (positivo/negativo), pleno de vida, mas também de morte, com potencial tanto para a criação quanto para a destruição, em tensão e em movimento, capaz de realizar pequenas mudanças ou grandes transformações, o "paradoxo original".

Tudo isso nos leva a pensar nos pares virtuais partícula/antipartícula da física, surgindo e se aniquilando em seguida no vácuo quântico, que é, por definição, um "espaço vazio". Mas o espaço é também um campo, ainda segundo as definições da física e, de acordo com o princípio da incerteza de Heisenberg, nenhum campo pode medir precisamente zero, pois sempre haverá uma incerteza mínima, que pode ser imaginada como uma variação minúscula que vai de um valor ligeiramente superior a zero (positivo) a outro ligeiramente inferior a zero (negativo), mas nunca efetivamente zero.

Como não podemos ter o “nada” manifestado como presença, já que ele é a própria definição de ausência, temos pares de partículas virtuais entrando e saindo da realidade, o que explica as oscilações mínimas acima e abaixo de zero, um exemplo típico da manifestação daquele equilíbrio dinâmico que descrevemos acima.

O “nada”, ou melhor, o “vazio”, é também um conceito pertinente à Teoria dos Conjuntos na matemática. O conjunto vazio dá origem, no que poderia ser descrito como uma espécie de "mágica" determinada pela axiomática, a partir de sua própria admissão, a toda infinidade numérica natural. Ele é o “pano de fundo” a partir do qual qualquer apresentação de um evento se faz possível, como diria o filósofo francês Alain Badiou.

Por outro lado o algarismo “zero”, apesar de aritmeticamente simbolizar a ausência total é, paradoxalmente, ainda segundo a Teoria dos Conjuntos, elemento de um conjunto unitário. Este "monoteísmo cabalístico" de uma lógica aparentemente surrealista tem o potencial para gerar uma infinidade de "deuses" aritméticos: { } = 0; {0} = 1; {0, 0} = 2; {0,0,0} = 3; e assim sucessivamente.

Por outro lado, podemos entender a sequência dos números inteiros, positivos e negativos, como um truísmo onde 0 = 0, já que tanto o infinito positivo quanto o infinito negativo tendem a anular-se mutuamente (+1-1 = 0; +2-2 = 0; +3-3 = 0; etc, etc, etc).

Só para reforçar nossa argumentação, podemos citar também a forma como se representam os algarismos na lógica binária (utilizando-se apenas as cifras 0 e 1), que é utilizada como ponto de partida para qualquer tecnologia baseada na eletricidade; o “um” simboliza um circuito fechado e o “zero”, um circuito aberto, ou seja, a passagem livre ou não de uma corrente elétrica, analogamente à existência e à não-existência, o “ser” e o “não-ser”. Por exemplo, na conversão do sistema decimal para o binário, temos que: 0 = 0000, 1 = 0001, 2 = 0010, 3 = 0011, 4 = 0100, 5 = 0101, 6 = 0110, 7 = 0111, 8 = 1000, 9 = 1001 e 10 = 1010, obedecendo-se sempre ao mesmo raciocínio de alternância de “zeros” e “uns” na sequência que se pretenda representar.

O matemático indiano Pingala apresentou a primeira descrição conhecida de um sistema numérico binário no século III a.C. e um conjunto de 64 hexagramas, análogos a números binários, foi utilizado pelos antigos chineses no texto clássico do “I Ching”. Conjuntos similares de combinações binárias foram utilizados em sistemas africanos de adivinhação tais como o “Ifá”, bem como na geomancia praticada na Idade Média.

O sistema numérico binário moderno foi documentado de forma abrangente por Leibnitz no século XVIII e em 1854, o matemático britânico George Boole publicou um artigo fundamental detalhando um sistema lógico que se tornaria essencial para o desenvolvimento do sistema binário, particularmente em sua aplicação a circuitos eletrônicos.

O sistema binário é base para a álgebra booleana, que permite fazer operações lógicas e aritméticas usando-se apenas dois dígitos ou dois estados (sim ou não, verdadeiro ou falso, tudo ou nada, 1 ou 0, ligado ou desligado). Toda eletrônica digital e computação está baseada nesse sistema binário e na lógica de Boole, que permite representar por circuitos eletrônicos digitais (portas lógicas) os números e caracteres, além de realizar operações lógicas e aritméticas. Os programas de computadores são codificados sob forma binária e armazenados nas mídias (memórias, discos, etc.) sob esse formato.

Ainda neste contexto aparentemente onírico, mas nem por isso menos real, temos os surpreendentes conjuntos dos números irracionais e o dos números imaginários, os quais, apesar de sua existência simbólica na representação de relações abstratas, são indispensáveis aos cálculos necessários para a construção de uma bem concreta usina hidroelétrica, por exemplo.

Tudo isso nos leva a pensar que talvez devamos concordar com Nietzsche, para quem "a concretude só foi inventada para se adaptar às exigências da lógica” e não o contrário, ou seja, a Matemática, com seus “zeros” e “uns”, infinitos positivos e negativos, cálculos diferenciais e integrais, raízes quadradas sem coeficientes reais, “pi”, “aleph” e outras abstrações simbólicas, tem uma existência mais concreta, parafraseando Shakespeare, do que supõe a nossa vã lógica intuitiva.

Eis aí "Deus". Agora posso afirmar que ele existe e é binário; mas porque só um (que na verdade é dois)? Não, ele é também a síntese decorrente de uma dialética trágica que nos remete à admissão do terceiro excluído de Aristóteles no contexto de uma lógica paraconsistente, portanto três. Uma "Santíssima Trindade"?

Aliás, posso recorrer a tantos deuses ou atributos divinos (os números naturais não passam da repetição do mesmo "1", 'ad infinitum') quanto achar necessário para me manter "no bom combate". Projeto-me neles e quero ser "sua imagem e semelhança"; eles e eu somos o falso fingindo ser verdadeiro; somos, simultaneamente, os autores e os atores de uma peça de teatro ("play", em inglês, que também significa jogo, brincadeira) tanto particular quanto coletiva. Mas é um jogo só aparentemente sem regras, muito divertido, mas ao mesmo tempo muito sério; um campo de batalha para guerreiros que se querem imortais e um terreno fértil para a semeadura da glória e do horror.

Assim sendo, à nenhuma instância é lícito reivindicar uma tal autoridade que seja capaz de negar o direito ao desvario da poesia ("poiesis" = criação), essa matriz virtual de toda mitologia, que permite fazer convergir, ao mesmo tempo, por exemplo, o alfa e o ômega do cristianismo, o "übermench" de Nietzsche, os avatares do Hinduísmo, ou mesmo a infinidade de messias e heróis forjadores de lendas, reais ou imaginários, que estão sempre presentes em qualquer cultura, manifestações do Ser de Heidegger, concretizado em alguns entes privilegiados, "mais privilegiados" que a maioria.

Dizem que a vida imita a arte; cabe a nós, imbuídos de certa indiferença trágica, fazermos com que este adágio seja algo mais do que simples palavras para que possamos dar sentido à existência, nos perpetuando em espírito da forma como indica Krishna ao incentivar Arjuna para a guerra contra seus primos no mito do "Bhagavad Gita", alegoria da busca pela realização completa de nosso potencial enquanto seres vivos.

Não podemos nos esquecer também que, como disse Protágoras (e de certa maneira ele tinha razão), "o homem é a medida de todas as coisas". E que é a partir do homem que há de surgir o "para-além-do-homem", desde que escolha as ferramentas mais eficazes à sua disposição neste percurso. A matemática, a música, a poesia e a filosofia estão, sem sombra de dúvida, entre elas, ainda que o intercambio entre as mesmas não seja atualmente tão fecundo quanto já foi ou ainda pode vir a ser.


POST-SCRIPTUM:


Viagem pouca é bobagem; aliás essa cannabis é mesmo da melhor qualidade...




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