segunda-feira, 31 de maio de 2010

A CIA E A GLOBALIZAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO

























[Trecho de uma entrevista concedida pelo cineasta Mauro Lima (“Meu Nome Não é Johnny”) à jornalista Luciana Pessanha (O Globo), em março de 2009]


P: O filme que você está escrevendo tem nome?

R: Não.

P: A tua pesquisa parece ser gigante...

R: Ficou gigante porque achei que devia partir de fatos reais e não ficcionais, então tive que procurar muitas histórias para colocar no roteiro e mostrar que em cantos diferentes do mundo o crime organizado podia se cruzar globalizadamente. Aliás, a globalização não é uma invenção do neoliberalismo, no crime organizado isso já é muito velho...

P: O que te instiga na globalização do crime?

R: Eu me perguntava: será que a gente vai ver a vida inteira filmes onde essa questão parece que se encerra no chefe do morro? Nessa coisa de varejo? Os chefes do morro no Brasil não sabem nem de onde vem essa porra. O cara vende pó como mais um produto que foi empurrado para a clandestinidade. O Rio de Janeiro é sitiado porque tem um gerente do morro que coordena esse sítio? Eu queria uma visão macroscópica, olhar de cima e entender que a questão do crime organizado, e sobretudo das drogas e das armas, sempre atendeu a interesses de nações, não de chefinhos de morro ou de fazendeiros.

P: Onde você foi buscar informação?

R: Em livros. E com a ajuda de um agente aposentado, o Francisco Garisto, que é meu consultor e trabalhou na Polícia Federal dos anos 70 aos 90. Ele foi infiltrado em cartéis internacionais, sentou na frente do Pablo Escobar com uma identidade falsa...

P: Falando em Pablo Escobar, você podia contar a história do julgamento dele?

R: Está no livro do Michael Levine, um ex-agente do DEA (Drug Enforcement Administration), chamado “A Grande Mentira Branca”. O Levine é o correspondente a esse meu informante, só que americano. Ele escreveu que o Pablo Escobar disse que a única coisa que ele não admitia, de todas as mentiras que inventaram durante o julgamento, era dizer que ele era associado a guerrilheiros, porque ele é um empresário, um homem de negócios, é contra o comunismo e qualquer movimento guerrilheiro.

P: Como você pretende organizar as informações no seu filme?

R: Tenho que pensar em pessoas, em cantos diferentes do mundo, envolvidas com máfias diferentes. Escolhi uma do Oriente, uma dos EUA, uma do Brasil, outra do leste europeu. E vou contar a vida desses caras ao longo de 30 anos.

P: E como é que você chegou às conexões do tráfico de drogas com a CIA?

R: Até a eleição do Obama, e principalmente durante a Guerra Fria, a CIA era uma empresa completamente independente da Casa Branca, que trabalhava com um orçamento secreto e com as operações mais malucas para financiar movimentos de derrubada de repúblicas comunistas ao redor do mundo. Se você ler “Legado de Cinzas”, do Tim Weiner, escrito só com documentos oficiais, vai ver a maluquice. Durante a Guerra Fria, tudo o que fez para derrubar ou evitar alguma revolução foi baseado em desinformação e sabotagem.

P: O que você chama de desinformação?

R: Você pode ter a via diplomática para resolver um conflito internacional, pode ter uma guerra oficial e declarada ou ir por uma terceira via: contrainformação, espionagem, sabotagem, financiamento de contraguerrilha. Oficialmente os EUA não fizeram nada em relação ao golpe de estado no Brasil, mas os porta-aviões deles se despencaram pra cá, porque estavam preparados para uma cagada. Eles não deram um tiro, mas pegaram um Zé Mané, tipo cabo Anselmo e... como é que um cabo pode ser estopim de um golpe de estado? Ele era presidente da Associação de Marinheiros, insuflou os companheiros de uma maneira absurda e incontrolável, aquilo sai em tudo o que é jornal, aquela baderna, o golpe acontece, o delegado Fleury prende o cara e, em duas horas, ele muda de lado? Ninguém muda de lado em duas horas. Não deu nem tempo de ele apanhar. Existem cabos Anselmos espalhados pelo mundo inteiro. Você pode explodir um cinema e dizer que foi um guerrilheiro. Eu li uma entrevista com um ex-agente da CIA em posto avançado em SP, onde ele contava que saiu da agência porque tinha que explodir um cinema na Avenida Paulista e culpar o partido comunista. Tem um documentário sobre ex-funcionários da CIA que mostra um agente infiltrado em Cuba, cuja missão era envenenar o leite que a União Soviética mandava para as crianças. Como é que eles levantavam dinheiro pra essas operações? Eles sempre tiveram orçamentos secretos. As verbas deles sempre vieram de lavagem de dinheiro, de venda de armas e do 'drug trade'.

P: Com que exemplos?

R: A famosa Conexão França foi o seguinte: as docas dos portos de Marselha eram dominadas por sindicatos ligados ao partido comunista. A CIA deu apoio logístico para a máfia dos Corsos tomar o controle. Os Corsos eram mafiosos, então toda a heroína que foi para os EUA durante os anos 50 vinha dessa conexão. Eles sempre financiaram o inimigo: Ho Chi Minh, Fidel, Saddam Hussein, Bin Laden, os Mujahidin do Paquistão foram financiados durante a guerra com a Rússia pelos americanos, tudo com dinheiro do 'drug trade'. O Afeganistão também, nos anos 70. Os grandes barões da droga lá eram os caras que não queriam russo lá de jeito nenhum, porque queriam vender papoula. A CIA bancava os Mujahidin, onde o Bin Laden fez escola.

P: Isso tudo é assunto do seu filme?

R: Não. Mas o 'drug trade' da Indochina, sim. No Laos, a CIA tinha uma companhia aérea de fachada, chamada Air America, que transportava gente, inclusive o Dalai Lama, em aviões supostamente comerciais, mas que levavam armas e heroína. Isso está no “The Politics of Heroin”, Tem um livro chamado “Barry and the Boys” que conta a história do Barry Seal, que fez voos pra Cuba, na época em que os Estados Unidos financiaram o Fidel para derrubar o Fulgencio. Esse cara trabalhava para CIA e como piloto comercial ao mesmo tempo. Nos anos 80 ele foi preso por tráfico de drogas umas três vezes, era pego com 300 quilos de cocaína num teco-teco e pegava prisão domiciliar por seis meses. Ele fez tráfico de cocaína da Colômbia para financiar a contraguerrilha na Nicarágua, era parte do esquema Irã-Contras.

P: Sempre se financiou contraguerrilha com drogas?

R: No Afeganistão, na guerra com a Rússia, eles usaram os drug lords da papoula; e, na América Latina, a cocaína. O escândalo Irã-Contras começou quando se descobriu que os EUA vendiam armas para o Irã e o Iraque. A Rússia apoiava o Irã e os EUA, oficialmente, o Iraque. Mas, para financiar a derrubada do governo da Nicarágua pelos rebeldes (os Contras), eles vendiam armas para o Irã e o Iraque. O escândalo estourou porque um avião caiu na América Central com quatro toneladas de cocaína. Nessa década o Bush pai era diretor da CIA, e o Noriega era agente da CIA e traficante. O Noriega virou presidente do Panamá, e, assim que o Bush foi eleito presidente dos EUA, o exército americano invadiu o Panamá, arrancou o cara de dentro do palácio e o levou para ser julgado como traficante nos EUA. Ele era arquivo, não podia abrir a boca. Na verdade o que eu quero dizer é que o tráfico de drogas não atende o interesse do Comando Vermelho, e sim de nações.

P: Todas as rotas mundiais de drogas do seu filme chegam a CIA?

R: O meu consultor brasileiro estava investigando uma conexão Mato Grosso-Bolívia e se infiltrou num cartel. Na mesma época o Michael Levine estava na Argentina, trabalhando para a DEA, fingindo que era traficante americano, comprando toneladas de cocaína. As duas operações tiveram que parar porque o governo democrata da Bolívia estava perigando e isso era financiado pelo tráfico, associado à CIA. As duas operações esbarraram na CIA, que protegia os traficantes. O brasileiro parou porque teve que reportar à Polícia Federal e à DEA que um general boliviano, emblema do combate às drogas no governo democrático, era parte do tráfico. Quando ele viu o nome desse general na “Veja” como ponta de lança do combate às drogas, mandou um dossiê para a PF dizendo que ele frequentava as fazendas dos traficantes, e a operação parou aí. Pouco depois teve o golpe, e esse general virou presidente: o Garcia Meza. Historicamente esse fato se chama O Golpe da Cocaína. Com o americano aconteceu a mesma coisa. Uma hora ele viu que estava correndo risco de vida, e essa coisa não ia dar em nada. No livro “A Grande Mentira Branca”, ele conta que, num dado momento, um policial argentino torturador imundo virou pra ele e disse: “Vem cá, gringo, quem você acha que está beneficiando esses traficantes? São seus conterrâneos!”. Depois descobriu que a informante dele estava totalmente ligada ao golpe militar e aos traficantes. Aí viu que era um idiota, fez um ‘report’ dizendo que isso não ia dar em nada, e mandaram ele voltar para os EUA. Aí ele escreveu uma carta secreta para um jornalista do “New York Times”, o Larry Rohter, que publicava artigos ufanistas sobre a guerra contra as drogas do Reagan, explicando que não era bem assim, que o buraco era mais embaixo, acreditando que o jornalista ia arrumar um jeito de fazer um escândalo. Dois dias depois saiu outra matéria ufanista. Logo em seguida abriu-se um inquérito contra o Levine, não por isso, mas por motivos absurdos.

P: Como você pretende orquestrar tantos fatos em vários cantos do mundo?

R: Se você tirar o joio do mundo do crime organizado, que é gigante, fica com um quadradinho.

P: Você não teme pela sua vida?

R: Não é um filme de denúncia. Não vou dar nomes. Tudo isso já foi fartamente documentado. E essa galera toda já morreu. O crime hoje é outro.

P: Está mais organizado?

R: Acho que sim. Eu nem sei como funciona hoje. Mas sei que não é assim.




POST-SCRIPTUM:





Pode até ser que não seja mais assim, porém, e ainda que os personagens desta tragicomédia sejam outros, com certeza tem muita gente poderosa se beneficiando da velha política de 'combate às drogas', usando os mesmos argumentos hipócritas ao mesmo tempo em que alimenta a corrupção em todos os níveis do poder público em todo o mundo.


sábado, 8 de maio de 2010

DUALIDADES E SIMETRIAS



































"Parece-me que a questão decisiva da espécie humana é a de saber se, e em que medida, o seu desenvolvimento cultural será bem-sucedido em dominar o obstáculo à convivência representado pelos impulsos humanos de agressão e de autoaniquilação" - Sigmund Freud


Existe uma discussão milenar, velada ou explícita, presente em quase todas as manifestações culturais da humanidade, seja nas artes, nas ciências, nas religiões ou na filosofia, a respeito do real valor da emoção, no sentido em que esta é percebida como as tais tão criticadas ‘paixões humanas’, supostamente a origem (ou, pelo menos, uma delas) da irracionalidade, em contraposição a razão, fundamento do ‘logos’ (palavra grega da qual deriva o termo ‘lógica’) e, portanto, de todo e qualquer discurso, filosófico ou não.

Românticos e sensualistas a parte, é indiscutível que a segunda (a razão) tem tido uma significativa vantagem sobre a primeira (a emoção) nesta comparação, ao longo dos tempos.

Afinal, devem as paixões ser suprimidas ou estimuladas pelo homem?

Do meu ponto de vista, nem uma coisa nem outra.

Estas deveriam ser, antes de tudo, aceitas e compreendidas, objetivando-se o desenvolvimento de um equilíbrio, o mais harmonioso possível, no interior da alma humana.

Indiscutivelmente tal equilíbrio não é possível sem o auxílio das ferramentas do intelecto, porém, para que  seja concretizado, há que se ampliar, necessariamente, o âmbito de abordagem do entendimento racional – valorizando-se a suposta ‘irracionalidade’ da mitologia clássica ou do zen-budismo, por exemplo, bem como o potencial da imaginação para criar ou descobrir o novo na literatura, na física teórica ou na comunicação entre os homens, suas relações de produção e interação com o meio ambiente – através da admissão de lógicas alternativas àquela praticada convencionalmente (aristotélico-cartesiana).

Como disse Grant Morrisson: "Não existem dualidades. Apenas simetrias". Ou seja, o conflito entre opostos é apenas ilusório. Eles se complementam necessariamente e um não existe sem o outro, assim como a luz e a sombra. E toda a relatividade, todo o "cinza" do universo, é resultante daquela tensão, real ou aparente, que gera energia potencial entre todos os pólos (ou melhor, simetrias) possíveis e imagináveis, viabilizando, assim, aquilo a que chamamos de realidade. 

Metafísica? Talvez, se entendida a partir de versões equivocadas da pós-modernidade que se distanciam do horizonte conceitual fundamental em que se formou a compreensão histórica da modernidade e de sua relação com a racionalidade, atualmente postas em questão.

Parafraseando Arnold Gehlen (para discordar das conclusões do mesmo e concordar com J. Habermas), apesar de admitir que “as premissas do Iluminismo (Aufklärung) estão mortas”, ainda assim suas consequências continuam em curso e elas não são ‘apenas’ de cunho social, mas também, e eminentemente, de cunho cultural. Admitir que tal discussão esteja obsoleta em nome de um suposto pós-Iluminismo é tornar-se cúmplice, mesmo que involuntariamente, de um evidente contra-Iluminismo. E, como já dizia minha avó, "quem anda pra trás é carangueijo".

Bem diferente é buscar novos entendimentos a partir de um olhar crítico às conquistas intelectuais do passado. Até porque, síntese dialética tem a ver com superação por assimilação e incorporação e não mera rejeição e negação, função da antítese: admitir a irracionalidade não significa, necessariamente, abrir mão da racionalidade.

E que não se diga que a dialética está superada, baseando-se em argumentos no mínimo discutíveis, sob o risco de empobrecimento do pensamento. Ela é, certamente, uma ferramenta limitada (como todas o são, em última análise), mas ainda assim extremamente útil ao processo de reflexão, desde que acompanhada de outras tantas possibilidades instrumentais e não cotejada como verdade única e absoluta.